São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997
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O sagrado direito de demitir

PAUL SINGER

Noticia-se há semanas a grande mobilização de trabalhadores que a decisão da Renault de fechar uma fábrica na Bélgica e de despedir mais de três mil pessoas vem provocando na Europa. O que demonstra que demissões em massa, decididas por firmas tendo em vista apenas a sua lucratividade, toleram-se cada vez menos.
É o poder do grande capital concentrado sobre a vida de milhares de famílias que está sendo contestado, pela primeira vez desde que a onda neoliberal vem engolfando o mundo.
Enquanto isso acontece no Velho Continente, aqui no Brasil o governo decide denunciar a convenção 158, que trata de impedir a demissão "imotivada".
Essa convenção já está aprovada pela OIT-Organização Internacional do Trabalho -note-se bem, em que têm assento entidades de empregados e de empregadores dos países-membros- desde 1982.
No Brasil, a referida convenção foi aprovada pelo Legislativo em 1992, mas sua ratificação pelo governo só foi registrada na OIT em janeiro de 1995. Em abril do ano passado, o atual governo editou o decreto 1.855, determinando que "a convenção 158 da OIT deverá ser executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém" (artigo 1º). Mas em novembro comunicou à OIT que o Brasil iria retirar sua adesão.
A luta que se trava ao redor da convenção 158 e da demissão imotivada não é exatamente edificante. A referida convenção está longe de assegurar a estabilidade no emprego, com que sonham os trabalhadores. Mas ela restringe o direito unilateral de demitir pelo patrão, admitindo-o apenas quando causado pela capacidade ou comportamento do empregado ou por necessidade de funcionamento da empresa.
No caso das demissões motivadas pelo desempenho do trabalhador, a convenção assegura-lhe o direito de defesa, sendo do empregador o ônus da prova de suas alegações. No caso das demissões por motivos econômicos, tecnológicos, estruturais etc., a convenção prevê que os representantes dos trabalhadores sejam informados em tempo oportuno, para que possa haver conversações visando "evitar ou limitar os términos e as medidas para atenuar as consequências de todos os términos para os trabalhadores afetados, por exemplo, achando novos empregos para os mesmos".
A ratificação pelo governo brasileiro da convenção 158 desencadeou críticas e recursos judiciários contra a mesma, por parte de confederações patronais. Seguiu-se a reversão do posicionamento do governo, desejoso (ao que se noticia) de evitar que a convenção desvalorize as estatais a serem privatizadas, supondo que os novos donos das mesmas pretendam efetuar demissões em massa nelas.
Torna-se evidente que a pretensa "revolução silenciosa" em curso não prescinde do sagrado direito de demitir, sem o qual a ascendência do capital sobre o trabalho não estaria assegurada.
A convenção 158 não faz mais do que civilizar o término do emprego, dando aos trabalhadores direito de defesa individual e possibilidades de conter e parcialmente compensar os efeitos coletivos do mesmo. Ela não proíbe demissões em massa, apenas as retarda um pouco e dá oportunidade aos prejudicados de mobilizar apoios na sociedade e no poder público.
É impressionante que um instrumento tão equilibrado e que, além do mais, está previsto na Constituição brasileira (artigo 7º) provoque tanto repúdio em nosso patronato, a ponto de o governo reverter suas próprias medidas recentíssimas e se expor a ser o único no mundo todo a denunciar a convenção 158 do OIT.
É preciso forjar um arcabouço legal em que reduções inevitáveis do emprego possam ser combinadas com medidas compensatórias que efetivamente impeçam que inocentes sejam punidos pela cegueira do progresso técnico ou da globalização.
A responsabilidade por tais medidas teria de ser assumida por todos os que ganham com as mudanças que eliminam o emprego: o capital que incrementa sua lucratividade, os consumidores que terão produtos melhores e/ou mais baratos e a sociedade em geral, representada por diversos órgãos do Estado.
A convenção 158 seria apenas um passo modesto nessa direção. Sua denúncia e a falta de regulamentação do artigo 7º da Constituição nos fazem retornar ao marco zero nessa questão.

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