São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997
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A música que não se assovia

BIA ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O rock morreu, viva o tecno. Gostando-se ou não, o rock já perdeu seu papel de principal alimentador de formatos pop para a música eletrônica em seus vários gêneros, subgêneros e microgêneros.
Antes que saiam gritando por aí, aqui usamos música pop como sinônimo de música produzida dentro da cultura de massa. OK? Ou seja, Shakira, a banda hardcore mais furiosa e obscura da Califórnia, o DJ mais desolado de Cingapura, está todo mundo abrigado sob o guarda-chuva da música pop.
Até 88. É esse o ano do segundo verão do amor, agora não mais na Califórnia e sim em Londres. Enquanto na Costa Oeste americana o rock tinha um dos seus últimos espasmos de renovação, com o Nirvana (e, significativamente, o influxo de energia que tomou Seattle alimentava-se do passado, era um espasmo punk-metal com dez anos de atraso), a morte do rock estava urdida por samplers, DJs e festas gigantescas regadas a Ecstasy. A era tecno havia começado e, em pouco menos de uma década, substituiria o rock no papel de referência musical da cultura pop.
Há um empobrecimento nessa troca? Sem cair na lenga-lenga do saudosismo, o admirável mundo novo do tecno deixa muito para trás. De cara, o discurso: o rock falava e muito. O tecno balbucia, geme, resfolega, grita. Com maior ou menor intensidade, pertinência, beleza, inteligência e inclusive oportunismo, o discurso do rock sempre tentou vislumbrar algum tipo de alternativa, de demonstrar algum tipo de inconformismo. O tecno acabou com a idéia de letras, de poesia associada à música. Quando abre a boca, celebra o momento. O discurso que emana na confusão sonora é, de maneira geral, muito mais conformista: o mundo está aí do jeito que está, então, vamos nos drogar e dançar enquanto dá. Se perdemos a estupidez habitual das letras de heavy metal, por outro lado, o tecno não vai nos dar nenhum Leonard Cohen ou Lou Reed.
O tecno também sepulta a figura do virtuose, do instrumentista talentoso. Afinal, é música de máquina, e a habilidade está na combinação, na programação, na colagem. A mestria individual no embate com um instrumento inexiste na música eletrônica -em outras palavras, nos livramos do exibicionismo, da vaidade, da chatice insuportável dos solos de guitarra (e dos solos de bateria). E o tecno enterra o ídolo, o vocalista objeto de desejo, o herói, o que pode ser devastador para o desenvolvimento sexual das adolescentes.
Por fim, o tecno muda a relação com ouvir música de forma radical. Rock é música para dançar e celebrar com os outros, mas também para escutar trancado no quarto chorando as mágoas e assobiar chutando lata na rua. Ou seja, o rock pode ser uma experiência coletiva e individual, diurna e noturna, sóbria e embriagada. O tecno precisa de uma mise-en-scène: drogas, noite, festa, dança, clima. Ah, mas tem o ambient, tem trip hop, tem sei lá o que mais. Mas alguém consegue assobiar Chemical Brothers? Cantarolar Tricky no chuveiro? Implodindo o formato canção e centrando fogo na movimentação mais ou menos alucinada dos corpos, o tecno impõe modos de fruição que exigem uma disposição de espírito específica.
Não há muito o que fazer, entretanto. Evidentemente, o rock vai continuar sendo produzido e consumido, de forma nostálgica, marginal e cada vez menos importante. Quando David Bowie e U2 em seus discos mais recentes se rendem ao tecno, sem que isso sinalize apenas uma jogada de marketing suja, é sinal de que o mundo pop mudou de trilha sonora.

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