São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Indignação

PIERRE SANÉ

Na noite de 31 de março, os brasileiros testemunharam a pior face da sua Polícia Militar.
As imagens chocaram a nação e provocaram indignação diante de uma polícia que, em vez de prevenir ou resolver crimes, os comete. E essa é uma das tantas vezes em que a polícia exorbitou. Há um ano, o Brasil se espantava diante de um outro massacre: 19 camponeses sem-terra foram mortos, e mais de 60 outros, feridos, em Eldorado do Carajás (PA).
É triste que, em ambos os casos, tanta atenção e tanto furor tenham sido causados principalmente pela exibição das cenas filmadas. Muito mais violência policial se comete longe das câmeras, presentes só os policiais e as vítimas.
A chocante realidade é que essa violência é generalizada e corriqueira no Brasil. Todos os anos a Anistia Internacional recebe denúncias de violência policial, de São Paulo e de todas as regiões do país. Elas representam o grosso do nosso trabalho. Em 1996, registramos centenas de casos de execuções perpetradas pela polícia e pelos esquadrões da morte.
O que fazer para erradicar a cultura da violência policial?
Começo pelo caso recente. Como um primeiro passo e para que se perceba que justiça está sendo feita, as autoridades estaduais e federais devem realizar uma investigação rápida, completa e imparcial dos graves abusos cometidos pela PM e levar os responsáveis aos tribunais, sem demora.
Esse caso não pode ser paralisado pelo Judiciário como aquele da Casa de Detenção, em que os policiais militares responsáveis pela morte de 111 presos no Carandiru, em 1992, ainda não foram julgados. Também não pode seguir o exemplo de Eldorado do Carajás, em que todos os 155 policiais participantes do massacre foram acusados de homicídio, mas nenhum foi suspenso de suas funções.
É verdade que as autoridades paulistas conseguiram reduzir o número de mortes de civis por parte da PM, mas essa última ocorrência mostra que ainda é preciso mais ação. O alto nível de impunidade desfrutado pela PM é o principal obstáculo a uma redução ainda maior da violência.
Em palavras simples, a polícia sabe que mata e se safa.
A Anistia Internacional tem repetidamente pressionado tanto as autoridades federais como as estaduais a enfrentar esse grave problema. A impunidade persiste também porque a PM se permite investigar e julgar a maioria das violações de direitos humanos cometidas pela própria PM.
Pedimos a urgente transferência desses casos para a jurisdição da Justiça comum, onde se garantam investigações e julgamentos imparciais.
Embora essa proposta integre o próprio Programa Nacional de Direitos Humanos do governo federal, apenas uma pequena parte da sua respectiva reforma legislativa foi aprovada.
A jurisdição de homicídio doloso por policiais militares em serviço foi transferida dos tribunais militares para os civis, mas a PM reteve a responsabilidade pela investigação desses crimes e pela determinação do dolo. Alguns dos crimes exibidos pela televisão -como agressão e tortura- ainda não se enquadram na jurisdição da Justiça comum.
Ainda que as PMs se subordinem às autoridades estaduais, as autoridades federais são responsáveis pela garantia dos direitos fundamentais de toda a população, segundo as várias convenções internacionais que o Brasil assina.
As violações devem não apenas ser rigorosamente punidas, mas também impedidas de voltar a ocorrer. Entusiasmou-nos a inclusão da educação em direitos humanos nos currículos das academias de polícia entre as medidas destinadas a erradicar a brutalidade policial persistente.
A incapacidade das autoridades brasileiras de impedir as mais graves violações de direitos humanos causou uma triste litania de massacres nas mãos de policiais militares: Candelária, Vigário Geral, Carandiru, Corumbiara, Eldorado do Carajás. O mundo precisa se convencer de que novas medidas concretas para evitar a repetição de tragédias serão tomadas, e tomadas logo.

Texto Anterior: Liberalismo na casa do vizinho
Próximo Texto: O perigo da perda da auto-estima
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.