São Paulo, terça-feira, 8 de abril de 1997
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'Diadema Nunca Mais' é o melhor filme brasileiro

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Como cinema, foi o melhor filme brasileiro dos últimos tempos. Não tem os efeitos especiais dos filmes americanos, não tem diálogos, apenas gritos e sussurros, não tem estúdio, só uma locação suja e pobre, atores desconhecidos e, no entanto, horrorizou muito mais. Por quê?
Não é uma produção cara, tendência perigosa do cinema brasileiro atual; ao contrário, é uma realização popular dos produtores Ratão e Negão, ligados ao tráfico ("hélas!").
"Diadema Nunca Mais" aborda um tema atualíssimo, mas sem os costumeiros apelos políticos por uma mensagem "positiva"; limita-se a expor o conflito entre excluídos sem farda e excluídos disfarçados de homens da lei, num buraco do inferno, um capo de lama perdido (permitam-me) lá no cu do Judas.
Atores: soldados boçais e sádicos, influenciados pelo cinema americano (ver adiante) e civis recrutados ao acaso, no melhor estilo "ad lib" do "cinema-verdade". O resultado é um trágico "documental", em que elementos ficcionais se mesclam ao real, rica vertente da arte "empenhada".
O ponto de vista do "metteur en scène" (diretor-autor) é o de uma câmera-personagem. Assim, o diretor se oculta, em vez de interferir com gestos largos, mandar repetir, gritar por megafones. O diretor (e, por extensão, todo o estilo narrativo) se esconde como um fugitivo -será descoberto? Esse suspense povoa toda a ação e acrescenta um tremor às imagens. Não mais o diretor do "ponto de vista de Deus", como no cinema de um, digamos, Fellini, mas o diretor do ponto de vista dos ratos.
A câmera esteve adstrita a um só ângulo, sem "travellings", sem gruas, sem as luzes das grandes produções como, por exemplo, "O Paciente Inglês". Essa limitação, contudo, não tirou do autor-diretor sua inventividade. Dizem que ele até já foi cinegrafista da Globo (devia ser recontratado), precisão profissional que se adivinha no belo "camerawork" que transforma economia em tensão.
Alguns momentos me lembram a sinistra "mise-en-scène" de Jean-Marie Straub (em "Nicht Versonht"), diretor alemão que os desinformados clipeiros não conhecem, mas que criou o chamado "plano saturado", em que a mórbida insistência nos tempos longos nos faz participantes de uma verdade insuportável.
Em alguns momentos, até evoquei o longo "plano-sequência" de Antonioni em "O Passageiro" e também a cena final de "Nostalgia" de Tarkovski. Mas isso são preciosismos de cinéfilo. Importa o impacto dramático conseguido por Francisco X e por seus produtores, Ratão e Negão.
Essa emoção se deve muito ao roteiro e aos personagens. O filme parte de uma sábia inversão dramática, o que provoca um corte na expectativa do público: nele, o bem é o mal e o mal é o bem. Os mocinhos são bandidos e os bandidos... Não diria mocinhos, já que ninguém sabe naquele "Death Valley", naquele "OK Corral" quem leva o quê em seus corações sombrios, mas são, no mínimo, vítimas.
Esse procedimento dramático digno de um Robert Towne (no roteiro) ou mesmo de um Samuel Fuller e seus personagens inesperados já tira das platéias a expectativa de uma remissão moral ("redemption") ao final da fita.
A espera de uma "catarsis" purificadora fica interdita. Ninguém irá para a cama com a tranquilidade de que o Bem sempre triunfará. Ratão, Negão e Francisco X aboliram não só o tradicional "happy end", como ainda deixam a obra sem final, abrupta, moderna, o que nos faz inseguros e emocionados como há muito tempo não ficávamos. Por quê?
É claro que já nos chocamos com Carandiru e seus 111 cadáveres (filme mais épico), mas foi um choque "a posteriori", um choque "de ausência" diante de um massacre de muitos, o que dissolve nossa dor. (Já houve até coisa pior como aquela cela-forno onde torraram 30 presos, com uma bomba de fogo. Até os tênis derreteram, lembram-se? Mas isso são águas passadas, flores pisadas, ahh... "Verões de 87"!...).
Já "Carandiru, a Missão" (que foi comandada, aliás, pelo oficial que hoje investiga o crime de Diadema - oh, Deus, como entender?) nos chocou como uma "Lista de Schindler" corintiana; aqueles corpos nus, cozidos à linha grossa, nos horrorizaram "politicamente".
Nauseados, lamentamos o Ser, o mal do mundo, os absurdos sociais etc. "Carandiru, a Missão" vimo-lo depois de acontecido. Este, vimos ao vivo, aqui e agora. Carandiru foi narrado no pretérito perfeito, como nos filmes americanos. Este foi no presente, como um Godard ou um Hal Hartley.
"Diadema Nunca Mais" é um filme que nos feriu pessoalmente. Tivemos medo. A produção impecável de Ratão e Negão (os Barretões da favela) nos brindou com uma identificação apavorada com as vítimas. Podíamos estar lá, apanhando na sola do pé ou levando um tiro displicente na nuca. Isso se deve ao sábio trabalho de câmera, que alterna elegantemente lentas "zoom-ins" com planos gerais ("long shots") áridos e panorâmicas reveladoras.
Uma das cenas mais pungentes é narrada praticamente "off screen", quando o PM leva o neguinho-pagodeiro (parecia um Grande Otelo) para trás do muro, numa doce sugestão quase sexual. Nesse ponto, a câmera fecha em close, tentando "pular" o muro que encobre as porradas que adivinhamos pelos gritos e por silhuetas de cassetetes e braços desesperados. A narração de Marcelo Rezende também acrescenta tragédia à cena, quando surge o branquinho frágil e ele avisa: "Vejam este homem. Ele vai morrer!" O choque é total, como se nós tivéssemos na mão o destino do pobre rapaz.
A gestualidade dos atores PMs é visivelmente influenciada pelo cinema americano recente. O "Rambo", por exemplo, o PM Otavio Gambra, tem um estilo típico do Actors Studio de NY, principalmente quando ele passa de um repouso calado e sombrio para a súbita bofetada, lembrando as brutas explosões de um Charles Bronson.
Outra novidade interpretativa que aumenta nosso horror é a falta de sincronia entre o pavor das vítimas e a calma divertida dos PMs. É como se ali fosse um "playground" militar, uma gincana alegre de machões exibicionistas, uma "farra do boi". (Note-se também um leve tom pederasta entre os milicos, competindo em braveza e no viril manuseio dos pobres diabos "estuprados".)
Por último, o filme de Diadema, temos de confessar, nos dá um raro tremor "voyeur" (segundo Bergson, a "essência" do cinema). Não é a toa que já vimos repetidamente as bofetadas e porradas sem nos cansar, até com prazer. Por quê? Sexo. Trata-se da visão de cenas íntimas, "cenas primitivas" como dizem os analistas, quase uma orgia "gay" simbolizada.
Há algo de sodomia purificadora naquele ritual sem Deus. Alguém está sendo punido em nosso lugar. Afinal, todos nós temos culpa nisso tudo, maus e bons, todos temos culpa pelas prisões cheias, pelos corporativismos que impedem reformas administrativas, pelo desejo de exterminar bandido que tantas vezes expressamos (se aqueles neguinhos e branquelas fossem assassinos, estaríamos tão chocados?). Ou seja, os PMs não sabem por que estão batendo, mas nós sabemos por que estamos apanhando.

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