São Paulo, quarta-feira, 9 de abril de 1997
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Cinema hagiográfico

SYLVIO BACK
ESPECIAL PARA A FOLHA

O documentário brasileiro está em alta. De gênero "menor", assim usualmente encarado pela crítica e pela mídia, em dissonância ao seu sucesso na Europa e nos EUA, agora chega a sua vez entre nós. E, nesta hora, da segunda edição de festival dedicado a ele, o cavaleiro de cinco documentários de longa-metragem nos últimos anos (e um sexto em montagem) gostaria de provocar uma discussão sobre a embocadura moral dessa vertente, que está na origem do próprio cinema.
Curtas e longas, o documentário nacional tem revelado uma incontornável vocação para algum tipo de patronato (não confundir com patrocínio, que seria a encomenda marqueteira pura e simples). É uma vasta filmografia com assinatura quase sempre comprometida. Às costas dela, idéias servis sopram rumos éticos e estéticos. Por mais subreptícias que elas fluam, acabam sempre se denunciando na "verdade" última do filme.
Essa ideologização é um cancro inflamado cuja raiz nos remete ao cinema mudo. De lá até cair no "cinema de autor" atuavam os nossos conhecidos "cavadores".
Cinegrafistas e cineastas de aluguel, pagos para registrar e incensar fatos e feitos dos poderosos de plantão. Raras vezes viraram suas câmaras para flagrar algum acontecimento inusitado, como greves, levantes populares ou revoluções. Se o faziam era para ficar do lado do campeão e virtual novo patrão.
À época do seu auge nas primeiras décadas, o cinema de cavação se propunha a ganhar dinheiro seduzindo o espectador para a "novidade" da Sétima Arte. Enquanto isso, seu conteúdo turvava-lhe a percepção sobre a miséria cotidiana para idealizar e promover governantes e mecenas.
Hoje, porém, esse acervo ainda que contaminado é de grande valia. Com o passar dos anos suas imagens perderam a pertinência ideológica, mas não a histórica. O tempo as desmobilizou criticamente. Do utilitário cinema de cavação, resta um inestimável retrato do país. No entanto, a descoberta do seu avesso enseja o desmonte da solenidade moral com que a história oficial sempre procura perpetrar suas versões do passado.
Essa reverência ao oficialismo acabou por se constituir na mais insidiosa herança a inocular o documentário brasileiro moderno. (E, a bem dizer, com melhor desenvoltura e disfarce -a mesma ilação serve para os filmes de ficção). Trata-se do cinema "chapa branca". Seu foco vicioso é paradigmático e indisfarçável. É como se fora uma arte estatizante, estatizada. Um cinema escravo voluntário de interesses políticos, de ideais autoritários e "verdades consagradas" pelo Estado, partidos, Igreja, Universidade, "personalidades". Um cinema clientelista, na feliz expressão do historiador e cineasta francês Marc Ferro.
Preside esse cinema, a par do seu mafioso corporativismo, de um lado, uma esperta autocensura que lhe dê livre trânsito junto a patrocínios e financiamentos. (Não é a origem do dinheiro para sua produção que determina o viés pelego dos filmes: ele é inerente ao autor); de outro, um cego investimento no discurso hegemônico do vencedor e no "Weltanschauung" em cartaz. E, por que não, muitas vezes no do vencido -pois a história do vencido também é manipulada pelos seus. Não há lugar para a dúvida, que dirá para a democracia e seus conflitos de opinião.
Tudo o que signifique a impermeabilidade da ordem estatuída, eleita ou não, e "todos" seus passados, a estetização dela colada a uma permanente restauração do mito, do herói, da institucionalização de uma verdade dogmática, portanto, infensa a contestações, não importa de que jaez moral e político -eis os mandamentos do cinema "chapa branca".
Com as exceções que confirmam a regra, o cinema histórico documental e de ficção brasileiro não vai além de uma ilustração a cores dos famigerados livros didáticos.
Mas ele não se esgota aí. Na sua esteira vigora, a partir dos anos 80 e em especial na área do documentário, seu primogênito mais cultuado: o cinema hagiográfico. Filmes que, ao biografar protagonistas da história (políticos, militares, religiosos, intelectuais, artistas etc.), ficam genuflexos, como se seus personagens fossem santos.
Por meio dessa heroicização individualizadora tenta-se "reescrever" a história do Brasil: eles não passam de pretexto, de cortina anímica para idealizar ou demonizar acontecimentos do passado. Não há uma visão holística do eleito, mas um recado edificante embutido. Ninguém é de carne e osso. Haja imagens adjetivas, entrevistas laudatórias e narração entoando hosanas.
Diverso do cinema de cavação, que ostentava uma certa ingenuidade, o cinema hagiográfico, tão frequente (e impune) ultimamente, é a melhor e mais amadurecida formatação de um recauchutado cinema totalitário, comum aos regimes de inspiração soviética e/ou nazi-fascista. São filmes que buscam o conservadorismo do espectador. Não o estranhamento. Buscam seu olhar apascentador. Não a revelação e o risco. Buscam a unanimidade, a catequese. Não o dissenso, a livre circulação dos contrários. Os filmes pensam pelo público. Procuram levá-lo pela mão como a uma criança, patronalizando-o, imobilizando-o.
Estamos diante de uma impostura moral e estética travestida em pesquisa, documentação, testemunhos e reflexão históricos -para provocar a empatia pelo constrangimento e a idiotia da platéia. Pelo jeito como a nossa história vêm sendo filmada, rastreada e recontada por esse cinema chamuscado, podemos nos considerar nas malhas de uma "pós-ditadura" imagética -a caminho de um religioso fervor por uma verdade "revelada" exclusiva e excludente. Um triste cinema de autor e autoria em que o criador, demitindo-se da poesia, da invenção e da liberdade de olhar, vira fautor do engodo e autoritarismo. É vítima involuntária da sua criatura.

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