São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Democratizar a terra

EMIR SADER

O Brasil é um país injusto, antes de tudo, por não ter democratizado o acesso à terra. A modernidade capitalista é menos desequilibrada na Europa ocidental, nos EUA, no Japão, na Coréia do Sul e mesmo em outros países da América Latina, porque, nesses países, junto com a industrialização deu-se uma reforma agrária. A nossa via de industrialização, já no getulismo, optou por "pactos de elite" com a oligarquia rural, deixando de lado a reforma agrária, bem como a sindicalização e o acesso à cidadania dos trabalhadores do campo. Não por acaso, as forças que representam os latifundiários -o PFL à frente- continuam em destaque nos blocos no poder.
O preço é conhecido por todos, embora sempre subestimado: a expulsão da população rural que, impedida de produzir no campo, se aglomera nas cidades, gerando, em grande parte, a crise urbana; a não-exploração do potencial agrícola do Brasil, que volta a importar grãos em grande quantidade; o poder desmesurado e ditatorial da oligarquia rural, visível na impunidade que cerca o massacre do Pará.
Mesmo na Constituição de 1988, a que mais afirmou os direitos de cidadania -tanto assim que as contra-reformas do governo atual se voltam diretamente contra ela-, a terra e o corpo não foram contemplados. Nela, a ausência de uma discussão sobre o aborto indica que o direito à propriedade da terra é, para as elites, mais importante que o direito da mulher de dispor de seu próprio corpo.
A reatualização da questão da terra no Brasil proporcionou uma renovação da bibliografia sobre o tema, na qual o estudo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocupa um lugar central. "MST - Formação e Territorialização" desenvolve uma análise dos processos de espacialização e territorialização da luta pela terra no Estado de São Paulo, apoiado nas experiências das ocupações que ali ocorreram entre 1983 e 1996. A trajetória do MST nesse Estado, principalmente na região do Pontal do Paranapanema, pôs em xeque um reinado inquestionado e secular de grileiros.
Antes de se concentrar nesse ponto, o livro esboça um painel histórico da questão. Primeiro, aborda as transformações recentes na agricultura, passando em seguida à gênese do MST, no bojo das novas formas de luta pela terra. Segue-se um histórico do MST, desde a primeira fase, compreendida entre 1978 e 1985, marcada por ocupações pioneiras como as das famílias desalojadas pela construção de Itaipu e as dos posseiros da região de Andradina, em São Paulo. O ano de 1985 representa um marco na construção desse movimento, com a ocupação da fazenda Anoni, no Rio Grande do Sul, por duas mil famílias. Data desse ano a realização do primeiro congresso nacional dos trabalhadores sem terra, em Curitiba, quando se constituiu formalmente o MST.
O livro preocupa-se também em examinar as contribuições do MST para o processo de socialização da política, para a integração da comunidade, do sindicato, da escola, da moradia como lugares estratégicos de formação da cidadania. Por seu intermédio, um setor social sempre preterido em seus direitos vê afirmada sua cidadania ao mesmo tempo econômica, social e política. É bem verdade que nenhuma forma particular se constitui hoje em paradigma generalizável para o conjunto dos movimentos sociais, dado que cada um deve encontrar suas novas e próprias formas de ação; mas não é menos verdadeiro que nos métodos de busca e conquista da cidadania encontra-se um fértil material de reflexão para que o conjunto dos trabalhadores possa alterar o quadro atual de avalanche contra seus direitos.
O MST nasceu em 1980, de forma quase paralela ao sindicalismo classista do ABC. Enquanto este conquistou, com suas lutas, alguns direitos da cidadania, os sem-terra -estigmatizados como "violentos" e "sem lei"- ficaram confinados, marginalizados até mesmo entre os partidos de esquerda. A imagem típica dos sem-terra, perpetuada pela grande imprensa, era a de um homem com uma foice na mão, acusado pela morte de um PM, em Porto Alegre, embora investigações posteriores demonstrassem que a verdade não era bem essa.
Foi à custa de massacres e ainda da imagem de Diolinda -algemada e acusada de "formação de quadrilha", no mesmo dia em que PC Farias era solto pela mesma "justiça" brasileira- que começou a se dar a descriminalização dos sem-terra. Passaram a aflorar com mais força o preço que o país paga pelos pactos de elite que bloqueiam a democratização da terra, a simpatia popular pela reforma agrária e pelos sem-terra, a viabilidade econômica dos assentamentos do MST, a justiça e a urgência de suas lutas. O MST já conseguiu assentar 150 mil famílias (algo superior a 600 mil pessoas), em 1.200 assentamentos, que abrangem uma área de 6 milhões de hectares, produzindo plenamente em terras anteriormente improdutivas. As formas de propriedade são variadas, atendendo às reivindicações dos camponeses, compatibilizando a propriedade individual com a comercialização e a utilização coletivas dos implementos agrícolas. Não se trata do pequeno lote de terra que deixa o camponês indefeso, mas formas de organização coletiva, que têm se provado eficientes, com produtividade acima da média nacional.
Nesses assentamentos, não há crianças fora da escola. Eles dispõem de uma extensa rede de escolas básicas, que se estende até a formação de técnicos em cooperativas agrícolas. Procuram também evitar a separação, presente no movimento sindical, entre empregados e desempregados, seja pela solidariedade política, pela contribuição econômica voluntária, seja ainda pelo apoio que os assentamentos fornecem às ocupações de terras improdutivas e aos acampamentos de trabalhadores sem-terra. Além dessa população integrada plenamente à produção, existem 40 mil famílias acampadas em 157 acampamentos, aguardando, e lutando, pela resolução das suas reivindicações.

Texto Anterior: Um gênio passado a limpo
Próximo Texto: A tarefa do olhar
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.