São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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A perspectiva da consciência

LUIZ RENATO MARTINS

A constância da obra de Morandi (1890-1964) foge aos laços da arte moderna com a vanguarda. Parece alheia à história dilacerada do país. Só a incomum concentração moral em si, o corte racional garante, fora da arte, tal constância. Assim, tal coerência residiria no poder de negatividade da consciência diante do que está posto, como no viés universalizante de seus atos. Mas o que liga a arte e tal rigor ético extremo?
A obra de Morandi nasce do diálogo crítico com as correntes da arte italiana de 1910 a 1920. Morandi aceita o partido moderno do futurismo, mas nega a apologia aética do dinamismo, o ativismo irrefletido. Toma a tensão especulativa da metafísica (De Chirico), hostil ao mundo da ação, e recusa o teor pré-cézanniano da concepção pictórica e o tema das praças italianas, que evoca uma grandiosidade eternizante. Acolhe a remissão de "Valori Plastici" aos achados renascentistas de Giotto e Masaccio, mas sem tê-los como modelo de um classicismo atemporal e nacionalista.
Nos anos 20, define-se o eixo do trabalho. Empresta o horizonte baixo, do Quattrocento, que dava ao olhar a idéia de agir sobre as coisas, o viés de protagonista; o foco da razão, a visão que dominava o espaço. Na Florença que aperfeiçoou, via perspectiva geométrica, a representação do espaço natural, o otimismo histórico ecoava numa ordem plástica equilibrada e simples. Morandi retoma tais elementos em nova chave. Horizonte baixo, equilíbrio e simplicidade atestam, também agora, a fundação explícita do ato plástico. A diferença dos antigos é dada pela não-transparência do mundo, por um sujeito sem otimismo.
Se outrora cabia geometrizar o espaço natural e afirmar o poder humano em geral, já Morandi se atém ao primado da razão e à sua noção de espaço. Logo, não à tradução do espaço natural, mas à exposição da idéia de espaço gerado pela espontaneidade da razão. Tal reviravolta equivale na arte ao que Argan denomina postulado de Cézanne: "A identidade entre pintura e consciência". Assim é pela lição impressionista, reelaborada por Cézanne, da afirmação do plano e dos volumes, e da luminosidade como relações de cores, que Morandi refuta o classicismo e se põe num ponto da história moderna.
Argan sintetiza a premissa do período aberto por Cézanne: "O espaço é a realidade como vem colocada e experimentada pela consciência, e a consciência, se não abarcar e unificar o objeto e o sujeito, não é total" (1). Nesta "perspectiva da consciência", comum a Picasso, Mondrian, Klee, o que distingue Morandi? Seria a consciência dialógica, o respeito intransigente à alteridade, que -ao contrário de todo unilateralismo- pede o diálogo com o outro, o desdobrar-se da consciência numa alteridade opaca que o objeto figura. Nesta arte existencialista, dramatiza-se a imanência da consciência diante da opacidade irredutível da matéria.
Num prisma estóico, a arte de Morandi é dramática. A repetição dos seus motivos acentua a incerteza essencial quanto ao próprio desfecho, que faz de cada trabalho expiação da liberdade no plano da consciência, e de cada obra, resultado irredutível, sem sinal de método. A relação irrepetível de tons e formas, que distingue cada peça, denota a via incerta que leva a consciência ao embate vão com a matéria.
Partindo da perspectiva moderna da consciência, onde não cabe a dicotomia antiga em que o espaço vigia como recipiente da luz, tal como a matéria à forma e o objeto ao juízo do sujeito, como ordenar o novo espaço plástico? Não lhe resta senão pintar "ao revés", invertendo os termos da determinação das qualidades na pintura tradicional, em que se cristalizou o uso da luz como juízo de valor. Então, Morandi parte da consciência, análoga no trabalho à imediatez do fundo ou do suporte, em busca da opacidade da matéria, ou seja, da alteridade da sua garrafa no meio do caminho. As formas e cores das figuras surgirão como que cingidas pelo que está ao redor; sob pressão do fundo, do suporte -ou da consciência; enfim como eclipses ou sinais de resistência à luz. A opacidade dos objetos e da matéria à consciência vem realçada por um quê de sombrio ou por um branco espectral, sem arrefecer a tensão própria à consciência.
Se objetos e matéria, avessos à consciência, não se rendem, as variações de luz, os restos da reflexão vã fazem-se imediatos e consistentes ao nosso olhar, obtendo a fisicalidade requerida à tradução de massas e volumes, estruturando a determinação recíproca entre espaço e luz, segundo a sincronia moderna de pensamento e espaço. O volume, o limite das coisas, as variações de luz surgem como relações concretas. Nota-se a fabricação da luz e a produção do espaço -a ocorrência do pensamento na consciência-, em manobras claras e distintas: nas telas, o vaivém do pincel, os limites desfeitos, o drama dos tons; nas gravuras, o variar da malha regular dos traços; nos desenhos, a incorporação do suporte etc.
As reproduções do catálogo, de nível regular, documentam o todo da mostra. São úteis as secções de apoio: biografia, bibliografia etc. Já quanto aos estudos que inclui, de quatro autores italianos e um francês, nada contêm digno de nota. Em geral sem fio condutor, erráticos e confusos, não descendem da historiografia italiana que, com Venturi e Argan, sobressai pela clareza de juízos e pertinência histórica. Bem fará o leitor brasileiro, se for às citadas páginas de Argan sobre Morandi. Merece nota, ilhado em seu discernimento, o breve histórico do tema da natureza morta, de Luís Marques, mas editado na secção das autoridades, fora da secção "Estudos".
A política editorial dos organizadores, mais pródiga que a das mostras Rodin e Miró, é, no fundo, igual. Diminui uma notável realização, porque traz um pacote de textos prontos e sofríveis. Ignora um fato como o retrospecto da recepção da obra em questão no Brasil. Descura edição, tradução e revisão, e dá um lugar descabido às ocas declarações de autoridades e financiadores do evento.

Nota:
1. G. C. Argan, "Arte Moderna", S. Paulo, Cia. das Letras, 1993, págs. 375, 504.

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