São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Neoliberalismo e social-democracia

CELSO FREDERICO

Reunindo textos apresentados para um seminário promovido pela Pontifícia Universidade Católica (SP), em 1995, esta antologia dá continuidade às inquietações desencadeadas pelas mudanças de rumo na política nacional, especialmente aquelas que atingem o mundo do trabalho.
A primeira parte, dedicada às políticas de emprego, é aberta por Márcio Pochmann que põe em relevo a divisão que, desde 1930, acompanhou as interpretações sobre o mercado de trabalho no Brasil. De um lado, os reguladores, como Oliveira Vianna, teórico do corporativismo e defensor da intermediação do Estado no mercado de compra e venda da força de trabalho; de outro, os economistas liberais, como Eugênio Gudin, arauto do livre funcionamento do mercado, que acreditava ser esta a fórmula para a criação do pleno emprego.
Durante o ciclo de industrialização nacional (1933-80), a oposição entre reguladores e liberais se apresenta na base de novos argumentos. Os primeiros reafirmam a necessidade da presença estatal como condição para estruturar o mercado de trabalho e reduzir as desigualdades sociais. Já os liberais, levando em conta o contraste entre os dois Brasis, criticam a intervenção estatal, alegando que ela apenas serve para aprofundar as diferenças do mercado dual de trabalho, isto é, a coexistência de um setor moderno (com empregos formais, registro, salários altos etc) com um atrasado (baseado em ocupações informais e baixas remunerações).
A partir de 1980, a interrupção do ciclo de industrialização nacional propiciou novas versões sobre o mercado de trabalho. Os reguladores interpretaram o desemprego crescente como resultado estrutural do funcionamento da economia: o abandono do projeto de industrialização, a ausência de reforma agrária, a inexistência de uma política voltada para a construção de um Estado de bem-estar social etc. Os adversários da regulação estatal -agora intitulados neoliberais- viram o desemprego como resultado das baixas taxas de crescimento e, por isso, insistiram na tese da retomada do crescimento acompanhada da flexibilização do mercado de trabalho.
Propostas de cunho social-democrata aparecem no texto de André Urani, dirigidas tanto às políticas compensatórias, aquelas que visam a minorar as consequências imediatas do desemprego, quanto às reformas a longo prazo, destinadas ao combate de suas raízes estruturais.
Propostas alternativas ao desenvolvimento neoliberal são retomadas na terceira seção, dedicada aos direitos dos trabalhadores. Os economistas cedem lugar aos estudiosos do direito trabalhista.
Erickson Crivelli constata o envelhecimento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e trata da polêmica em torno de sua modificação. A ofensiva neoliberal, promovendo a "concorrência desregulada", exige a completa flexibilização das relações trabalhistas. A perspectiva social-democrata, por outro lado, não tem por que defender a permanência do antigo sistema, herdeiro do corporativismo e envelhecido após várias décadas de desenvolvimento econômico e complexificação da estrutura produtiva. Os maiores críticos da legislação corporativista foram, não por acaso, os sindicatos situados no pólo dinâmico e moderno da economia. Mas a crítica do sindicalismo cutista à estrutura sindical que, é bom lembrar, aproximava-se em muitos pontos daquela realizada pelos inimigos históricos do trabalhismo -os liberais-, parece agora subitamente envelhecida.
A reforma dos direitos trabalhistas navega assim em área de risco. Com cautela, o autor sugere uma série de medidas práticas voltadas tanto para a desregulamentação quanto para o aumento do intervencionismo regulador do Estado, a fim de defender a parte mais fraca de uma relação contratual entre "iguais".
Uma das propostas do autor merece a atenção especial do movimento operário: a garantia de um número mensal de horas livres para os representantes sindicais poderem dedicar-se às atividades associativas. Com isso, substitui-se "o atual sistema de liberação, remunerada pelo empregador ou pelo sindicato, que só tem contribuído à burocratização do sindicato". De fato, a profissionalização do sindicalista tem significado o seu divórcio definitivo com a vida profissional: uma vez alçados à direção do sindicato e às suas benesses, esses operários nunca mais retornam ao trabalho na fábrica. Aqui está a raiz do peleguismo, do antigo e do novo. O melancólico fim de Joaquinzão, o todo-poderoso dirigente do Sindicato Metalúrgico de São Paulo, é emblemático do encerramento da era dos antigos burocratas que permaneciam encastelados na máquina sindical. Os velhos pelegos, embora deformados por uma estrutura viciada, eram muitas vezes honestos, como comprovou a penúria em que Joaquinzão passou seus últimos dias: abandonado num asilo quase como indigente. Hoje, ao contrário, o neopeleguismo consagrou o vale-tudo da corrupção financeira e do arrivismo desavergonhado: o sindicalista yuppie, que vive em "flat" nos bairros elegantes e frequenta a coluna social dos jornais...
A última seção do livro, dedicada aos direitos sociais nos anos 90, compõe-se de três intervenções curtas. Rolf Kuntz aponta as causas econômicas do agravamento do desemprego como um capítulo da crise financeira do setor público; Salvador Sandoval explora a relação entre direitos sociais e políticos e os dilemas das frágeis democracias latino-americanas construídas "de cima para baixo"; e Emir Sader examina os direitos sociais na ótica da nova divisão internacional do trabalho ("globalização"), concluindo: "Se saímos da ditadura com o consenso de que o problema central do país era a 'dívida social', que a ditadura havia feito crescer a economia, sem distribuição de renda, o neoliberalismo foi impondo um outro consenso, o de que o problema é o 'déficit público'. Nesta visão, não há lugar para a questão social".
Há uma falha evidente na estruturação da coletânea. Uma seção inteira intitulada "Políticas de População: Migrações, Planejamento Familiar e Identidades" foi posta inabilmente em meio à sequência dos textos sobre políticas de emprego. Com isso, rompeu-se a continuidade das discussões centradas nos aspectos econômicos e jurídicos de um mundo do trabalho às voltas com a desregulação neoliberal, eixo do livro. As contribuições apresentadas por Neide Patarra, Maria Isabel Baltar, Fúlvia Rosemberg e Edith Piza, e debatidas por Margareth Arrilha, apresentam dados e reflexões importantes sobre os desdobramentos da Conferência do Cairo: a regulação dos nascimentos, as relações entre analfabetismo, gênero, raça etc. Tais colocações, entretanto, ficariam melhor no final, constituindo uma segunda parte.
De qualquer modo, a leitura desse conjunto diferenciado de textos é ilustrativa das dificuldades enfrentadas atualmente pelos setores oposicionistas. Surpreendidos pela ofensiva governamental (os textos datam de 1995), eles optaram por um discurso fortemente marcado pelo eticismo, fato evidente nas intervenções jurídicas do livro. Com o marxismo em baixa, ninguém ousou avançar na crítica do direito e nas ilusões que habitam esse mundo das formas. As reiteradas referências à ética normativa, à filosofia moral, aos valores e injustiças reforçam a crença na positividade do direito, embora o combativo Emir Sader não tenha esquecido de assinalar que "o mercado não reconhece direitos". Os direitos trabalhistas, contudo, não decorrem espontaneamente de algum consenso urdido pelos imperativos éticos subjacentes ao positivismo jurídico: eles brotam do conflitivo espaço das relações sociais. O apego à ética expressa a atitude defensiva e a perplexidade de uma esquerda que transformou o trabalhador em cidadão e, agora, protesta contra o projeto liberal que quer fazer deste último um mero consumidor.

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