São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Em defesa do antidoping preventivo

SABINO LOGUERCIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O COI (Comitê Olímpico Internacional) está reconhecendo que a cocaína não deve estar na relação das substâncias proibidas por antidoping.
Tarde demais para Diego Maradona, Claudio Caniggia e muitos outros, jogados à execração pública, sob a acusação de fraude esportiva, por intermédio da introdução, em seu organismo, de uma substância que não causa fraude.
Qualquer um deveria saber aquilatar a extensão do que considero um absurdo, em nome do qual -muito além de ser injuriado, escarnecido e ultrajado-, o indivíduo se vê privado, em geral por 15 meses, daquele que é o mais elementar, o mais consensual e o mais sagrado de todos os direitos: o de ganhar a vida com o seu trabalho.
É desalentador assistir à atitude de algumas pessoas que teimam em defender essa ação coercitiva sobre seres humanos, cuja atividade é simplesmente brindar, com seu desempenho atlético, os amantes do futebol e outros esportes.
O pior é ver tal brutalidade atingir um profissional desprotegido, como Dinei.
O antidoping preventivo é uma prática aceita, permitida e até aconselhada pela ética médica. Mas o antidoping punitivo a desprimora e afronta.
A cocaína e outras substâncias de mesma classificação farmacológica podem aniquilar a saúde de quem as ingere. Mas o atleta que o faz é, no máximo, um doente para ser tratado, nunca um delinquente para ser punido.
Trata-se de uma gestão médica, não administrativa. A pena de suspensão torna-se incogitável, porque a medicina não sabe e não pode punir.
E porque a medicina esportiva não sofre nem sequer um arranhão. Os repressores empedernidos sustentam que a medicina também penaliza, porém escondem que esse recurso só pode ser usado contra os próprios médicos que pisoteiam os princípios defensores da conduta imposta pela nobreza de sua atividade e não contra o paciente.
Castigar, com a privação do direito de exercer sua profissão, um sujeito que ingeriu um fármaco é como praticar a eutanásia em quem tem plenas condições de recuperar a vida.
Juristas, legisladores e jornalistas deveriam conhecer, um pouco que fosse, da intimidade do organismo humano, já desbravada pela ciência, para que pudessem avaliar a impropriedade absoluta de lei sobre as já existentes.
Os atletas punidos não passam de vítimas desse genocídio, que até nem tem executantes formais, porquanto qualquer ato humano só deve adquirir força jurídica e, consequentemente, repercussão social, se tiver o pleno consentimento da integração consciente.
O ato punitivo antidoping é de tão inconsciente que entra de carona nesta consideração só por lhe ter sido outorgada uma eficácia administrativa.
Mas é inegável que ele detém o vício insuperável da inconstitucionalidade, já não bastasse ser antimédico e imoral. Por trás da lenidade bem-vinda de proteger as competições, há um calvinismo moralista difuso, que vem ao caso por conta e risco de uma assombrosa ignorância -que, neste caso, serve como atenuante.

Sabino Vieira Loguercio, 57, é médico gastroenterologista, membro da Associação Médica do Rio Grande do Sul e defensor do antidoping preventivo

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