São Paulo, sábado, 12 de abril de 1997
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'Peças em Fuga' revela paixão pelo conhecimento

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Evite ler "Peças em Fuga" sem um chapéu por perto ou, de preferência, já na cabeça. Pois ao final da leitura, se você tiver um mínimo de sensibilidade, será impossível não querer aquele objeto, justamente para poder tirá-lo diante do nome Anne Michaels.
O romance de estréia dessa poeta canadense de 38 anos é, sem dúvida, um dos melhores livros lançados por aqui nos últimos anos.
Na contramão da onda de banalização da violência tipo "pulp fiction", ou da literatura supostamente desideologizada da Geração X e seguidores, "Peças em Fuga" é uma explosão poética em forma de prosa que não recusa o mergulho a sério por dentro do que há de podre e de belo na mente humana.
Trata-se, em resumo, da narrativa, em primeira pessoa, da vida de dois homens de diferentes gerações, que sobreviveram, cada qual a seu modo, ao Holocausto nazista.
O primeiro é Jakob Beer, único sobrevivo de uma família exterminada pela ocupação alemã em terras polonesas, recolhido aos 7 anos de idade e criado a partir daí por um geólogo-paleontólogo grego, não-judeu, de nome Athos.
O segundo homem é Ben, meteorologista canadense, amante da Literatura, em especial de biografias, filho de um casal que conseguiu escapar com vida, em idade adulta, de um campo de concentração.
Já na primeira página, um pequeno parágrafo dá o tom daquilo que se encontrará, em forma e conteúdo, por todo o livro de Michaels:
"Ninguém nasce uma vez só. Se tiver sorte, você torna a emergir nos braços de alguém; se não tiver, você desperta quando a longa cauda do terror roça o seu crânio por dentro".
Michaels afirmou numa entrevista que a força de sua linguagem provém da força dos personagens.
Com efeito, o estudioso e explorador Athos, por exemplo, é uma figura apaixonante, que se entrega aos estudos e à pesquisa arqueológica com a mesma voracidade com que devora a obra dos poetas gregos.
Após viver anos com Jakob na ilha grega de Zakynthos, muda-se para o Canadá, onde o garoto cresce e se torna poeta ele próprio, novo personagem inesquecível, equilibrando-se entre o passado e o presente, em meio a recorrentes pesadelos com sua irmã Bella, seu pai, sua mãe, todos mortos.
O meteorologista Ben, por sua vez, narrador da segunda parte do livro, encanta-se com a obra poética de Jakob e com sua biografia. Vai atrás de respostas para suas perguntas, as quais são, em verdade, em última instância, dúvidas também sobre seus próprios pais refugiados. É ele quem descobre, na Grécia, os relatos de Jakob, que formam a primeira parte de "Peças em Fuga".
Com personagens tão aficionados ao conhecimento humano em diversas áreas, é natural que Anne Michaels tenha se debruçado sobre vários temas para arquitetar a obra.
Assim, ao mesmo tempo em que somos levados pela firmeza, pela densidade e pela beleza de seu texto a ter uma experiência estética de primeiro nível, saboreamos o quanto enriquece uma pessoa a capacidade de se apaixonar verdadeiramente por um objeto de estudo, e o quanto a ausência desse exercício de conhecimento pode ser fatal.
É como se a atrocidade da guerra obrigasse os homens a fundirem poesia e ciência para buscar saídas. Diz Jakob Beer a certa altura: "Procuro aquele horror que, como a própria história, não pode ser estancado. Leio tudo o que posso. Minha fome por detalhes é ofensiva".
E mais adiante afirma Ben: "Mas eu nasci na ausência. A história deixara um espaço já fétido de liquens, vermes mascando um solo abandonado pelas raízes. As chuvas fizeram um pântano das partes mais baixas, a verde melancolia do brejo com seu ondulante tapete de pólen (...) Aí eu vivia com meus pais. Um esconderijo apodrecido pela tristeza".
Assim vai Anne Michaels, o livro inteiro.
É ou não de se tirar o chapéu?

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