São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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AUDIOVISUAL

ARLINDO MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

. Mestiçagem ou poética das passagens
Essas expressões foram utilizadas originalmente por Raymond Bellour na exposição "Passages de l'Image" (Paris, 1990) e dizem respeito à dissolução das fronteiras entre os suportes e as linguagens, bem como à reciclagem dos materiais que circulam nos meios de comunicação. As imagens são compostas, agora, a partir de fontes as mais diversas: parte é fotografia ou cinema, parte é desenho, parte é vídeo, parte é texto produzido em geradores de caracteres e parte é modelo gerado em computador.
Por sua vez, os sons são ora registros brutos ou processados, ora sínteses produzidas em computador, ora o resultado de um "sampleamento" (edição e metamorfose de amostras gravadas). Em obras recentes, como as de David Larcher ("EETC", "Granny's Is", "Videovold") ou Gianni Toti ("Squeezangezaum", "Planetopolis"), cada plano é um híbrido, constituído de figuras em migração permanente, de que já não se pode mais determinar a natureza de cada um de seus elementos constitutivos, tamanha é a mistura, a sobreposição, o empilhamento de procedimentos diversos, sejam eles antigos ou modernos, sofisticados ou elementares, tecnológicos ou artesanais.

. Metamorfose
Se há algo que marca profundamente as novas imagens é a sua extraordinária capacidade de metamorfose. Veja-se o incrível arsenal de distorções utilizado por Zbigniew Rybczynski em "The Fourth Dimension" (A Quarta Dimensão) e por Hans Donner em várias aberturas de novelas. A partir da introdução da eletrônica e da informática, as imagens se tornam fluidas, liquefeitas, iridescentes e infinitamente manipuláveis. Nesse sentido, elas não autorizam mais um tratamento no plano da mera referencialidade, no plano do registro puro e simples.
O efeito de real não se dá nelas com a mesma transparência e inocência com que ocorria na fotografia convencional ou no cinema clássico. Isso não quer dizer que as imagens contemporâneas sejam indiferentes à realidade, mas que o acesso a esta última é agora mais complexo, menos inocente e decorre de uma capacidade de "leitura" por parte do receptor. O audiovisual impõe-se hoje menos pelo seu poder de sugerir "realismo" ou competência mimética do que pela sua eloquência gráfica, plástica, conceitual ou, se quiserem, "escritural". Ele pressupõe uma arte da relação, do sentido, e não simplesmente do olhar ou da ilusão.

. Multiplicidade ou o neobarroco
Segundo Italo Calvino, a multiplicidade exprime um modo de conhecimento do homem contemporâneo, em que o mundo é visto e representado como uma "rede de conexões", uma trama de relações de uma complexidade inextricável. Recursos recentes de edição permitem jogar para dentro da tela uma quantidade quase infinita de imagens e sons simultâneos, para fazer com que se combinem em arranjos inesperados, como que atualizando a idéia de uma montagem "vertical" ou "polifônica", formulada por Sergei Eisenstein (1898-1948) nos anos 40.
A técnica mais utilizada consiste em abrir "janelas" dentro do quadro para nelas inserir novas imagens e, ao mesmo tempo, multiplicar as fontes sonoras em vários canais de som. Todo o cinema posterior a Godard (Peter Greenaway, David Larcher, Raul Ruiz, Rybczynski), todo o vídeo que segue a trilha aberta por Nam June Paik, todas as modalidades computadorizadas de multimídia e até mesmo programas ("Netos do Amaral", "TV Dante", "TV Pirata", "Brasil Legal") ou canais de televisão (MTV) apontam hoje para a possibilidade de uma nova "gramática" dos meios audiovisuais, que consiste em superpor tudo (múltiplas imagens, múltiplos textos, múltiplos sons), ou de imbricar as fontes, fazendo-as acumularem-se infinitamente dentro do quadro.
Trata-se, segundo alguns, de uma estética da saturação, do excesso (a máxima concentração de informação num mínimo de espaço-tempo) e também da instabilidade (ausência quase absoluta de qualquer integridade estrutural ou de qualquer sistematização temática ou estilística), mas essa também pode ser uma maneira mais adequada de representar a complexidade.

. Objeto virtual
Caminhamos rapidamente em direção às imagens e sons sintetizados diretamente em computador e, portanto, na direção da obsolescência dos aparelhos de registro (câmeras, microfones). Na memória dos computadores, "imagens" e "sons" são objetos virtuais, definidos apenas matematicamente e processados por algoritmos (conceitos científicos operacionalizados).
Não tendo, em sua forma digital, uma existência material, eles podem ser entendidos como campos de possibilidades. Assim, uma cadeira sintetizada na memória de um computador é uma possibilidade genérica de cadeira, que pode ser visualizada numa tela de monitor de mil maneiras diferentes, com qualquer cor, com qualquer forma, com qualquer função narrativa no cenário, com quaisquer propriedades sonoras, dependendo, unicamente, de decisões que o usuário toma ao lidar com os seus periféricos de interação.
Por sua vez, os suportes em que são armazenadas essas possibilidades de imagens e sons não são mais lineares e permitem o acesso a elas a partir de qualquer ponto, momento, distância, altura ou ângulo de visão. Objetos virtuais são condições essenciais para duas classes de projetos audiovisuais que estão sendo agora experimentados: aqueles fundados na interatividade, ou seja, no diálogo do usuário com a máquina (video game, hipermídia, cinema interativo), e aqueles fundados na imersão do usuário dentro das imagens e sons (realidade virtual).

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