São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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CUTURA POP

HERMANO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

. Autoria/plágio
O desaparecimento da massa tem quase como consequência lógica a impossibilidade de se manter qualquer distância entre artista e platéia. A lição faça-você-mesmo ("do-it-yourself") do punk passou a ser a tendência dominante (interatividade!) da fragmentada e fragmentária indústria de entretenimento dos anos 90. De repente, toda a humanidade está louca para se expressar, interagir e ser artista.
Muitas páginas pessoais da Internet parecem não querer dizer outra coisa: "Olhem como eu sou genial, especial, maravilhoso: vejam o meu filme, o meu poema, a fotografia da minha namorada e admirem minha habilidade em transformar a linguagem de programação html em arma estética". A maioria de seus autores leva a sério aquele desejo revolucionário da arte moderna de transformar a vida em obra de arte. Quem não transforma, está perdido, está por fora. E quem não se comunica, se trumbica. Em resumo: estamos condenados a ser artistas.
Muitas inovações sociotecnológicas recentes apostam que fazer arte é o nosso mais profundo desejo e tentam nos vender máquinas e programas que convertem PCs em estúdios de gravação de discos ou de edição de filmes e ainda podem distribuir a obra-prima daí resultante para todo o planeta. Mais interessante é ver que esses programas/máquinas (vide as novidades no campo da música generativa -como o Koan Pro adorado por Brian Eno- ou da edição não-linear de imagens em movimento) são cada vez mais "criativos", e fica a cada "upgrade" mais difícil dizer quem criou o quê, se a máquina ou a pessoa que "controla" a máquina.
±Junte-se a tudo isso o fato de a informação digital ser infinitamente copiável (desaparece também a distância original/cópia) e a festa "cyberpunk" está completa: ninguém mais sabe o que realmente quer dizer "direito autoral". Pois não há maneira eficiente de controlar o fluxo e o uso das informações (músicas, romances, filmes...) disponíveis em rede (e se o artista não torna seu trabalho disponível, muitos são os meios de pirateá-lo -como comprova o caso U2: músicas de seu novo disco já estavam "tocando" na Internet meses antes de o CD chegar às lojas).
As soluções propostas ou imaginadas para esse problema são terrivelmente dispendiosas (vigiar bem custa caro...) e quase sempre impraticáveis. Parece ironia, mas talvez seja libertação: em pouco tempo, quando todos puderem ser artistas, ninguém mais saberá como ganhar dinheiro com arte.

. Pop/antipop
Até o início dos anos 80 era fácil definir o pop como tudo aquilo que a massa considerava prioritário na sua lista de consumo cultural. Pop era Michael Jackson, pop era ET, pop era uma calça Levi's 501. Bons tempos aqueles. Tempos básicos, de uma simplicidade comovente.
Hoje, por mais que a indústria pop se esforce em emplacar megaproduções como "Independence Day", não há espectador que não perceba: falta alguma coisa. A falha não é de Hollywood. A culpa é da massa. Mas não porque ela tenha emburrecido ou se sofisticado a ponto de não mais se entreter com o entretenimento de antes. O problema é mais grave: a massa desapareceu e nenhuma pesquisa de mercado consegue encontrá-la.
Deve ser por isso que Michael Jackson anda feito um zumbi pelo planeta, entre favelas cariocas e indianas, como uma relíquia do passado, sem base de sustentação em paradas de sucesso. Sua música não está pior. Seus clipes até melhoraram. Mas quem realmente os viu? Quem comprou seus últimos discos? Michael Jackson era um ídolo de massa. A massa era o seu mundo encantando (e ninguém parecia ter maior conhecimento sobre os desejos da massa), um mundo que ruiu repentina e surpreendentemente, junto com o Muro de Berlim. Ou melhor: a massa se estilhaçou, espatifou, esmigalhou. Como diz uma letra de Antonio Cicero: não adianta tentar juntar seus caquinhos.
A globalização radical não teve como consequência a homogeneização do gosto de todos os povos, mas sim uma proliferação de grupelhos com interesses e estilos tão diversificados, que impede a produção daquele "aconhegante" máximo denominador comum do pop. Tudo é quase pop (do novo culto de Morton Feldman na música erudita à obrigatoriedade de fumar charuto, jogar golfe e dançar -ironicamente- macarena entre pós-punks norte-americanos), e nada realmente é.
Haverá sempre uma "tendência" antipop em funcionamento quando a adolescente indonésia gasta toda sua mesada para ir ver Naomi Campbell inaugurar o Fashion Café de Jacarta, o primeiro de toda a Ásia (a filha do primeiro-ministro da Malásia também estava lá!). Haverá sempre algo de irremediavelmente antipop em todo sushi-bar, mesmo quando imita uma cadeia de "fast-food delivery". E, apesar de todas as tentativas em contrário, há algo de terminantemente podre (no sentido mais antipop desse termo) no reino da ilha de "Caras".
Então, tudo conspira contra o velho e ingênuo pop (aquele que um dia gritou "Beat It!"): as ideologias libertárias dos "hackers" da Internet e a ideologia submundo do "drum n'bass"; as camisetas do Hard Rock Café de Cancún e as "guayaberas" (aquela camisa típica dos campesinos mexicanos), vendidas nas lojas X-Large dos Beastie Boys; o cinema de autor-"Slacker", de Richard Linklater, e o Centro Cultural Hélio Oiticica.
Mas nada pode simbolizar melhor a perdição do pop pós-massa quanto uma visita à Virgin Megastore de Times Square, de Nova York. O aumento de tamanho das lojas de discos não significou a sua nivelação "por baixo", muito pelo contrário: o ambiente, apesar de gigantesco e supermercadológico, incentiva o consumo, digamos assim, "minoritário". Há até um café (mas isso não é novidade, eles estão em todas as esquinas, com suas quatrocentas variedades de "capuccinos" descafeinados) no terceiro andar, ao lado de estantes de livros.
Em três dessas estantes, logo as primeiras, está a seção "Popular Culture". Popular, aqui, não é o popular de antigamente. Entre os destaques, aparecem: "On the Line", de Deleuze & Guattari; "TAZ", do anarquista Hakim Bey; "Archaic Revival", do tecnoxamã Terence McKeena e quase tudo "in print" de desconstrucionismo cibercultural e sadomasoquismo.
Esses eram livros que, até bem pouco tempo, só podiam ser encontrados em livrarias de estilo semi-underground de bairros boêmios e adjacências. Hoje eles estão ali, no centro do centro do mais estabelecido consumo cultural pop planetário, bem ao lado do teatro onde se comemora a multimilésima apresentação de "Cats".
Não há incoerência nem esquizofrenia nessa proximidade. No nosso mundo sem massa, pós-pop, não há mais margem fora do centro, não há mais distinção entre margem e centro, nada está no seu devido lugar e há consumidores "quase" vorazes para os produtos mais radicais, menos "sociedade de consumo". Ninguém tem realmente do que reclamar. Ou tem?

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