São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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O Brasil visto pela lente da tortura

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No intervalo de uma semana, o "Jornal Nacional" revelou ao país duas sequências de imagens de policiais xingando, espancando, torturando e, num caso, matando pessoas indefesas -a primeira na favela Naval, em Diadema, São Paulo; a segunda, na Cidade de Deus (que nome sugestivo!), Rio de Janeiro.
O sorriso desleixado estampado no rosto dos carrascos, a calma de quem se julga impune, a displicência dos gestos, a forma ritmada, quase em câmera lenta, com que batiam nas vítimas com paus ou cassetetes -todas as semelhanças entre as cenas apontam, enfim, para a semelhança decisiva, que une Naval a Cidade de Deus e ambas ao Carandiru, à Candelária, a Eldorado do Carajás: as vítimas dos representantes do Estado, em todos os casos, são pobres.
Foi como se a TV nos enviasse, através daqueles gritos de dor saídos de becos e de ruas escuras, aos porões de horror dos tempos do general Médici; foi como se nos revelasse aquilo que todos já sabíamos: a tortura policial é uma prática diária no Brasil, exercida à sombra do Estado, com a conivência das autoridades e da sociedade.
As vítimas não são mais presos "políticos", não se pretende mais a cada paulada extrair delas nenhuma confissão, nenhum arrependimento; as vítimas apanham, como sempre apanharam, só porque são pobres. O seu pecado mortal é o simples fato de terem nascido: por isso apanham.
A história do Brasil, vista do ponto de vista da "sorte" dos miseráveis, seria completamente diferente da que conhecemos (nós, os cidadãos civilizados, limpos, alimentados, bem informados) pelos jornais. A tortura teria nessa história um lugar central.
Democracia, lei, modernidade, moeda forte -nada disso alcança quem está sujeito a ser arbitrariamente abordado na rua para ser ofendido, maltratado, humilhado, torturado, assassinado.
Voltemos a Naval e Cidade de Deus. A maneira fria, pausada, quase protocolar com que policiais usam cassetetes e porretes para espancar os favelados lembra imediatamente os gestos ancestrais dos capatazes castigando escravos nos pelourinhos. As cenas são plasticamente idênticas.
Mário José Josino, o negro assassinado em Diadema pelo soldado "Rambo" com um tiro pelas costas, é provavelmente bisneto de escravos. No Brasil em que seus bisavós nasceram, os negros não eram cidadãos, mas animais sem direitos. Mais de um século depois do fim da escravidão, Josino foi tratado e morto como um animal sem direitos. Era pobre. O policial que o assassinou é uma versão atualizada dos antigos capatazes.
*
As imagens veiculadas pela Globo surgem num momento paradoxal. Por um lado, nunca se falou tanto em modernidade no Brasil, como se estivéssemos na ante-sala do mundo civilizado.
Por outro, nunca, como hoje, a TV foi tão submissa à polícia. Programas como "Na Rota do Crime", da Manchete, "Cidade Alerta", da Record, e "190 Urgente", da CNT/Gazeta, são raivosos, espumam de ódio, promovem diariamente linchamentos verbais, verdadeiras chacinas eletrônicas, ao mesmo tempo em que exaltam a bravura, o desprendimento e a coragem da nossa polícia.
As imagens veiculadas pelo "JN" põem a nu de uma só vez tanto as ilusões da nossa modernidade como a "gangsterização" da TV, que cada vez mais rivaliza com a violência que estampa na tela.
É possível rever 500 anos de história do Brasil a partir daquelas cenas condensadas em horário nobre. Uma história que não se repete como farsa, mas antes gagueja, patina e gira em falso sobre os escombros de uma única tragédia.

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