São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 1997
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A estética militar e as organizações policiais

CLAUDIONOR LISBOA

A discussão que se trava em torno da estética militar das organizações policiais brasileiras encarregadas da polícia ostensiva assume, constantemente, um caráter maniqueísta, em que se coloca a formação militar em contraste com a formação policial, imputando-se à primeira a preparação técnica e psicológica do soldado para a guerra.
Convém, portanto, já de início, estabelecer a distinção entre estética militar e cultura profissional bélica, coisas que não devem, absolutamente, ser confundidas.
A cultura profissional bélica é o conjunto de conhecimentos e habilidades que capacitam o homem isolado e a tropa para o combate. Trata-se de matéria exclusiva das Forças Armadas, que têm a destinação constitucional de defesa da nação na hipótese de guerra.
A estética militar, por outro lado, é o conjunto de estímulos (solenidade, rito, formalismo) que despertam ou internalizam no homem uma ética especial, constituída de valores como o sentimento exaltado do dever e o culto à hierarquia e à disciplina.
Manifesta-se por intermédio do cerimonial militar, de gestos e atitudes e de todo comportamento que materialize a obediência (seja às ordens dos superiores, seja ao ordenamento jurídico do Estado) e a disposição incondicional de cumprir o dever, que implica mesmo o sacrifício dos interesses particulares e, às vezes, da própria vida.
A disciplina e a hierarquia não são institutos originários da doutrina militar, mas do direito administrativo. Esse ramo do direito, ao tratar das organizações desconcentradas -que são todas aquelas em que a competência decisória é distribuída entre seus diversos níveis hierárquicos-, criou os institutos da hierarquia e da disciplina, como remédios para evitar o mau uso dessa competência.
Por isso, como nas demais organizações desconcentradas da administração pública, são indispensáveis nas polícias fardadas, até por imposição do direito administrativo, esses institutos.
O policial fardado é recrutado na própria sociedade, onde atua e continua vivendo. Ele traz consigo a herança da cultura brasileira, responsável por uma tendência individualista e indisciplinada.
Já em 1829, o precursor da polícia organizada, Robert Peel, ao criar a polícia de Londres, afirmou que uma polícia deve ser estável, eficaz e organizada militarmente. Ele não se referiu, certamente, à capacidade bélica de um exército, mas à organização e à disciplina decorrentes da estética militar, capazes de tornar seguro para a sociedade o emprego do poder de polícia.
Os eventuais deslizes praticados por alguns policiais fardados, no exercício do poder de polícia, não são causados pela estética militar, mas a despeito dela, ou seja, ocorrem nos setores em que ela vem sendo aplicada com menor intensidade.
Esse é, talvez, um dos motivos por que sucessivos relatórios trimestrais da Ouvidoria da Polícia de São Paulo apontam que 70% das queixas formuladas pela população referem-se a atitudes de integrantes da Polícia Civil -com um efetivo 50% menor que o da Polícia Militar-, que, em regra, trabalham no interior das delegacias.
Recomendamos cautela aos que, em um clima absolutamente emocional, procuram a solução do problema destruindo justamente aquilo que está evitando a desenfreada violência, num processo extremamente arriscado, pois que irreversível.
A disciplina e a hierarquia da polícia fardada são, no presente momento, os instrumentos indispensáveis de que dispomos para o aperfeiçoamento de uma polícia que não apenas respeite, mas que seja efetivamente aquela que proteja a dignidade humana.

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