São Paulo, sábado, 19 de abril de 1997
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Trevisan esquarteja a narrativa em '234'

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assim como a poesia de João Cabral, a força da narrativa de Dalton Trevisan está ancorada na repetição, na recorrência infernal de uma dicção muito específica e de alguns poucos temas, na coerência obsessiva com que ele persegue o núcleo duro das coisas, como se estivesse raspando o osso da vida.
O novo livro do escritor curitibano, seu 25º, intitulado "234", confirma seu movimento rumo à concisão extrema da prosa, movimento que ele próprio anunciava no prefácio que fez em 74 ao "Vampiro de Curitiba" (65), quando dizia: "meu caminho será do conto para o soneto e dele para o haicai".
Nesse novo livro, a exemplo de "Ah, É?" (94), Trevisan reúne 234 "ministórias", algumas de apenas uma frase, como se fossem suspiros desafiando o silêncio, mas todas com no máximo 15 linhas, provocando no leitor sempre uma sensação de desconforto diante de imagens que surgem bruscamente e são bruscamente interrompidas.
A crítica literária Berta Waldman, que estudou sua obra e publicou a seu respeito "Do Vampiro ao Cafajeste" (89), comentou que ele não tem apenas a obsessão de contar sempre a mesma história, mas também de nunca terminar de contá-la. Essa dupla obsessão está tematizada em "234", em passagens como: "Escreva primeiro, arrependa-se depois -e você sempre se arrepende." (231) ou "O conto não tem mais fim que novo começo." (233).
Como diz Berta Waldman a respeito de "Ah, É?", também nesse "234" o que chama a atenção é "seu processo de composição brutalista, que se resume no esquartejamento da narrativa tradicional. (...) Esculpindo a faca, preterindo qualquer gesto de sedução, Dalton Trevisan cria um lugar de resistência à literatura mercantilizada, porque não mima, mas agride e desnorteia o leitor com os cortes, as pausas, o silêncio e, principalmente, com a paisagem do inferno onde se insere a família e a ordem burguesa em geral".
Para ilustrar isso, nada melhor do que reproduzir algumas das "ministórias" de "234". A de número 110, por exemplo: "Na cama, diz o marido:
-Você é gorda, sim. Mas é limpa.
-...
-Você é feia, certo? Mas é de graça".
A de número 116: "O pai cegou nos últimos dias, castigo de haver posto em menino uma bostica de vaca na mão do ceguinho".
Ou a de número 173: "Quebra na pia o elefante vermelho de louça e para beber -oh, não- rouba as moedinhas da filha".
Atrás de rigor formal perseguido há décadas, Trevisan dá a impressão de ter suprimido virtualmente a forma, de ter finalmente alcançado, como já se disse, "a estupidez intransitiva da vida". Sua obra é um dos momentos mais altos da linhagem de escritores que souberam explorar o lado depreciado e infame das coisas brasileiras.

Livro: 234
Autor: Dalton Trevisan
Lançamento: Record
Quanto: R$15 (127 págs.)

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