São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997
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Zaratustra na Disney World

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Meu ofício é o de professor. Num país de constituição republicana como a França, e desde sempre racionalista, a tarefa de professor (quer nas ciências exatas, quer nas ciências humanas) é a de educar para um método "claro e certo". Não acredito, no entanto, que eu seja um professor que executa de modo rasteiro a sua tarefa institucional. Não poderia. Tenho plena convicção, de fato (como aliás a tinha Descartes, evocado como fundador do método), de que realmente existem poucas verdades claras e certas e que, mesmo estas poucas, sempre devem ser postas em dúvida.
E mais. Como homem da segunda metade do século 20, fui atraído pelas revisões culturais que neste período se operaram na historiografia. Por exemplo, as leituras positivas das teurgias do paganismo tardio do 3º e 4º século d.C.; ou então pelo neoplatonismo humanístico. Estas novas leituras derrubavam e destruíam o cunho racionalista da historiografia das Luzes e mostravam a riqueza de aspectos obscuros de nossa cultura. Alquimia e magia, sob este novo olhar, tornaram-se tecnologias do espírito que, em períodos sombrios, ajudaram a humanidade ocidental a estender a apreensão do mundo para além dos limites impostos pelo poder constituído. E isso vale para toda a história da ciência, pelo menos até Newton.
A nova historiografia também nos mostrou como os pobres e os humildes frequentemente construíram -justamente por intermédio de ciências herméticas, magias e religiões esotéricas ou anguzadas- uma ascética de resistência coletiva. A antropologia, especialmente aquela que milita sob as bandeiras "terceiro-mundistas", demonstrou os efeitos revolucionários destas crenças.
Deriva daí que uma série de obras, de outro modo excluídas de nosso patrimônio de conhecimento, foram readmitidas nos circuitos culturais. Basta lembrar as da Renascença com os seus magos, dentro das culturas neolatinas; mas também, e sobretudo, germânicas. Entre os mil exemplos, a nova leitura que se pôde fazer do século 17 inglês (de Shakespeare a John Donne até Milton e ainda, justamente, até Newton) e acima de tudo a nova leitura daquele herói da liberdade mágica que foi Giordano Bruno.
Por que, depois de ter declarado esta minha adesão a uma renovada compreensão de aspectos obscuros e censurados de nossa pré-história cultural, por que, mesmo convencido de que mito e eros, magia e teurgia constituem paradigmas não elimináveis de nosso saber, por que, depois de ter afirmado que os afetos estão passando, hoje, a constituir elementos fundamentais nas ciências da natureza e do universo e que têm certo relevo mesmo nas ciências do trabalho e da economia -por que, então, depois de ter reconhecido tudo isso, ao ler "O Alquimista", de Paulo Coelho, sinto uma reação de irreprimível recusa?
Porque este "Alquimista" é um Zaratustra de Disney World. Este não é um produto cultural, mas um produto comercial. É mercadoria escrita para imbecis (em termos etimológicos), isto é, para espíritos fracos e vacilantes. Explico-me. Em "O Alquimista", as características são minimalistas. Mas não se trata de um minimalismo conceitual: trata-se do minimalismo dos desenhos animados. Ademais, em "O Alquimista", o acontecimento ideal e espiritual é insuportavelmente redutivo; uma banalização nunca antes tocada, creio eu, nem sequer na indústria hagiográfica da Contra-Reforma, aquela -para nos compreendermos- dos "saint-sulpiciens".
Enfim, a lógica da narração é achatada e previsível, assim como o é a dos álbuns pornográficos à venda nas prisões. Quanto às paisagens, são, justamente, as da Disneylândia -mas talvez empobrecidas, pelo menos no que diz respeito à única Disneylândia que eu conheço, a parisiense (lendo "Inside the Mouse", Duke University Press, 1995, creio entender que em outros lugares a complexidade pode ser maior).
Mas por que motivo, então, esta fábula que se diz mística e ascética, mas que é somente sem pé nem cabeça, tem tanto sucesso? Por que "O Alquimista" é atualmente o livro mais vendido nas regiões dos Bálcãs, que saem do "socialismo real" (e digo isso sem subestimar o seu sucesso nos países do capitalismo avançado)?
Uma resposta plausível é que este tipo de narração corresponde às fantasias imbecis das pessoas humildes, numa época em que a exigência de esperança conjugou-se, desesperadamente, com a catástrofe de todas as ideologias que produziam esperança. O módulo da interpretação é meio batido, mas eficaz. Mas é suficiente? Não me parece. No fundo, neste terreno há autores que fazem melhor do que Coelho. Basta dar uma olhada nas listas dos best sellers (e, especialmente, considerar o sucesso que Susanna Tamaro vem obtendo) para reconhecer isso. Então qual razão específica para o sucesso de "O Alquimista"?
Provavelmente porque o livro de Coelho interroga um novo desejo de conhecimento que surge na atualidade. Quero dizer que a fábula de Coelho, caracterizada pela perspectiva da metamorfose, do metal e do homem, responde ao desejo de uma tecnologia simples para a felicidade do corpo (dinheiro e amor), largamente disseminada na sociedade do mercado global. A "science-fiction" mais inteligente tinha tocado estas temáticas, mas o registro narrativo de Coelho as subjetiva, simplifica-as ao extremo e, deste modo, torna real a ilusão para um largo público.
Mas esta ilusão é muito perigosa. Porque -mesmo supondo que aquela ascética estranha que vai da purificação de si próprio à construção do outro, e do amor à imortalidade, seja possível; e que esta clonagem contínua de si próprio possa acontecer- nada, absolutamente nada, nos assegura, dentro e fora da fábula de Coelho, de que apenas os presidentes dos EUA é que seriam os clonados e imortalizados (como conta, se não estiver enganado, "A Suástica ao Sol", uma bela ficção de Philip K. Dick; e como -e agora não me engano- aconteceu na ex-União Soviética por nada menos do que meio século). E este seria um destino sinistro, ao qual o "transe hermético" de Coelho não permite que se oponha resistência e nem sequer -o que é pior- um clarão de consciência crítica.
É a esta altura que me reconcilio com o meu ofício de professor racionalista e republicano e retomo -contra toda a deriva- a divisa cartesiana de "caminhar sem máscara" na busca da verdade e -contra toda a ilusão- a denúncia spinozista de toda hipótese mística: "asylum ignorantiae".

Tradução de Roberta Barni.

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