São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A visão da tragédia

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tudo em "A Filha do Otimista", romance de 1972 com que a já consagrada Eudora Welty recebeu o Prêmio Pulitzer aos 63 anos, vem de um problema de visão, e de ponto de vista.
Não é à toa que, além de considerada um dos grandes nomes da literatura sulista americana, Welty tenha trabalhado por anos como fotógrafa, sobretudo na juventude, durante a Grande Depressão, viajando a serviço do Works Progress Administration por todo o Mississipi, Estado onde nasceu em 1909. Muitas dessas fotos, que retratam a população local por vezes em condições de extrema pobreza, foram reunidas e publicadas um ano antes de "A Filha do Otimista", no livro "One Time, One Place: Mississipi in the Depression: a Snapshot Album".
Também não é à toa que o título da coletânea de seus principais ensaios, em que expõe suas afinidades eletivas (não apenas os mais próximos literária e geograficamente: Faulkner, Katherine Anne Porter e Willa Cather, mas também Tchecov, Virginia Woolf e Isak Dinesen), seja "The Eye of the Story" (O Olho da História), a partir de um texto em que a autora trata do tempo e do ponto de vista da narração.
Por tudo isso, pode soar como um clichê reafirmar, hoje, que a prosa de Welty, além do óbvio caráter regionalista (a maioria de suas histórias tem como cenário a região do delta do Mississipi), possui um "olhar fotográfico". E, no entanto, é o que melhor define "A Filha do Otimista", uma vez que toda a pequena tragédia que envolve os personagens do romance vem inexplicavelmente dos olhos e, por consequência, do olhar, da visão, além de ser narrada com uma certa distância "fotográfica".
Tudo começa quando o juiz McKelva, o "otimista" do título, aos 71 anos, acompanhado da filha do primeiro casamento, Laurel, e da jovem segunda mulher, Fay, diz ao médico, durante uma consulta: "Acredito que há algo de errado com os meus olhos". Submetido a uma operação para corrigir um simples deslocamento da retina, sempre com o espírito muito otimista, o juiz acaba morrendo, ainda no hospital, de causas não diretamente relacionadas à operação, mas que o livro também não pretende esclarecer, logo nos primeiros capítulos, tendo como pano de fundo o Carnaval de Nova Orleans. Sua primeira mulher, coincidentemente, também tinha perdido a visão e estava cega quando morreu anos antes. Nos dois casos, é como se o "problema de visão" anunciasse ou desencadeasse o processo de morte ou, pelo menos, permitisse a sua deflagração.
A atual mulher do juiz, Fay, que vem de um mundo mais pobre e humilde e não controla as suas emoções, por vezes as mais infantis, chega a agredir o marido no hospital, fisicamente, quando percebe que sua situação está degringolando. A cena deixa escandalizada sobretudo uma enfermeira, que diz à filha do doente: "Será que ela quer destruir o olho dele?". Antes, o que parece querer a jovem mulher, em seu descontrole emocional, é destruir o otimismo do marido. Sua agressão é um ponto fundamental no romance: a tentativa desesperada de fazê-lo reagir, de fazê-lo abrir os olhos para a morte e perceber que está morrendo, de não deixá-lo partir inconsciente, como um otimista, uma tentativa de fazê-lo ter consciência da dimensão da vida e de sua pequena tragédia.
O "otimista" seria portanto o cego, o que não vê a morte se aproximando, quando todos os outros desconfiam. Mas esse é apenas o princípio do texto, porque a partir daí, da morte do juiz, é que vai se desenrolar o romance de fato, no conflito entre a filha e a segunda mulher, dando uma outra perspectiva ao "olho da história".
Tantas vezes associada a Faulkner, mais pelo regionalismo, pela proximidade geográfica dos universos em que ambos situam suas histórias, do que realmente pela invenção literária e narrativa, Welty assume em "A Filha do Otimista" um ponto de vista extremamente simples e que pouco tem a ver com as idas e vindas e as diferentes vozes e tempos característicos do autor de "Luz de Agosto".
É uma tradição narrativa, por exemplo, fazer de cenas de velório e enterro o ponto de partida para a história de uma vida, em flash-back, como rememoração. Mas aqui quase não há memória, e o que há de lembrança é escasso ou pouco significativo. A vida narrada aqui não é a do morto, mas da filha do otimista, que sobreviveu.
O que importa é o presente, o momento em que tudo gira em torno da resistência e da não-resistência à morte. E os personagens se dividem entre os que vêem sua aproximação e os otimistas; os que têm uma consciência trágica daquilo por que estão passando e os que não têm. E essa visão, essa consciência, vem justamente da morte dos outros: "A culpa de sobreviver a quem amamos tem de existir (...). Sobreviver é algo que fazemos a eles. As fantasias sobre a morte não podem ser mais estranhas do que as fantasias sobre a vida. Sobreviver é talvez a fantasia mais estranha de todas", diz a filha, ao refletir sobre o seu próprio estado no mundo, depois de ter perdido mãe, pai e marido.
Ela faz parte dos que ficam no presente, dos que vêem, dos que sobrevivem com a consciência trágica e a visão, e que, com isso, são os que mais sofrem diante da insignificância de suas vidas. Só por essa idéia, que perpassa e sustenta todo o texto, já não seria de todo descabido dizer que, ao optar, como "olho da história", pelo ponto de vista dos que enxergam, "A Filha do Otimista" é um livro pessimista por excelência.

Texto Anterior: A integridade da poesia
Próximo Texto: BYRON; EÇA DE QUEIROZ; BORGES; DARCY RIBEIRO; CIDADANIA 1; CIDADANIA 2; ARTE ITALIANA; REVISTA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.