São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997
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O que dizem os genes

DEBORAH GIANNINI; ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA

Novos testes de DNA indicam a propenção genética para doenças como câncer de mama, osteoporose e rim policístico
POR DEBORAH GIANNINI E ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA
A bióloga Sílvia Regina Groto, 28, é uma forte candidata a ter osteoporose, doença que surge em torno dos 50 anos, causando enfraquecimento dos ossos e risco de fraturas devido à diminuição da massa óssea.
Mas Sílvia sabe também que não tem propensão ao câncer de mama, doença que acomete cerca de 28 mil mulheres por ano no Brasil.
Depois que descobriu sua predisposição genética à osteoporose, Sílvia mudou seu hábitos: caminha 30 minutos diariamente e procura comer alimentos ricos em cálcio. "Como soube disso depois dos 25 anos, não adiantou muito porque eu já tinha passado do pico de acúmulo de massa óssea, que acontece em torno dos 20 anos. Mesmo assim, passei a tomar mais cuidados", diz.
Enquanto as mulheres começam a se preocupar com a osteoporose só depois dos 40 anos, Sílvia pretende ter um acompanhamento médico a partir dos 30. Todo esse planejamento surgiu após ter recebido o resultado de um exame de DNA que pode indicar predisposição genética a doenças como osteoporose, câncer de mama, rim policístico e infarto do miocárdio.
Recém-lançados nos Estados Unidos, os testes estão sendo trazidos ao Brasil pelo Laboratório Genomic, dirigido por Fernando de Castro Reinach, 41, professor-titular do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP.
Segundo Reinach, esse tipo de exame será muito importante para a medicina no futuro. "Quando um bebê nasce, hoje fazemos o exame do pezinho. No futuro, vão tirar sangue e fazer uma ficha na hora, mostrando, por exemplo, que ele vai ter de tomar cuidado porque tem tendência a engordar, aos 40 anos vai ficar careca, mas, por outro lado, não tem nenhuma chance de desenvolver diabetes. Baseado nesse perfil, você vai poder organizar sua vida", diz Reinach.
Para descobrir se uma pessoa tem tendência a desenvolver determinada doença, o exame detecta se há alguma mutação nos genes associados ao mal. Se a mutação for constatada, significa que o paciente tem "predisposição genética" -não quer dizer que ele necessariamente terá a doença.
Em medicina hoje, sabe-se que quatro fatores influenciam o aparecimento de uma doença: além da predisposição genética, aspectos psicólogicos, presença de infecções e a influência do meio ambiente. Uma pessoa, por exemplo, com tendência a ter asma pode viver sem nenhuma crise se morar em algum paraíso ecológico, livre da poluição.
O procedimento do teste é o mesmo feito para paternidade, por meio de coleta de sangue, mas a análise é mais simples, já que apenas um gene será examinado -e não uma série de características genéticas.
Do sangue coletado, são isolados os glóbulos brancos e, depois, os núcleos das células, onde fica o DNA (molécula que contém o material genético). Uma máquina chamada PCR multiplica o DNA, ampliando regiões específicas do gene de interesse. Em seguida, esse gene é comparado a outros para verificar se tem mutações (veja quadro na pág. 11).
Cada exame custa R$ 400 e o resultado sai depois de 20 dias úteis. Para evitar histeria, o laboratório só faz o exame com solicitação médica.
Embora os exames de DNA sejam importantes para a medicina preventiva, eles suscitam questões polêmicas, porque não há cura para as doenças identificadas. Nos EUA, não são raros os casos de mulheres que tiveram resultado positivo nos testes e optaram por retirar os seios antes de aparecer sinais de câncer.
Os norte-americanos já discutem também as implicações jurídicas e sociais desses testes: os seguros saúde podem cobrar mais caro de pessoas com predisposição genética para determinadas doenças? As empresas podem exigir os exames de DNA no processo de contratação dos funcionários? (leia textos nas páginas 12 e 14).
Risco em judias
No caso de câncer de mama, as mutações do gene são raras -aparecem em 0,2% da população-, mas quem apresenta predisposição genética tem uma chance enorme, de 90%, de desenvolver a doença. Ou seja: é muito difícil você ter esse "gene defeituoso", mas, quem tiver precisa de acompanhamento médico preventivo.
Reinach recomenda o teste para 1) quem tem no mínimo dois casos de câncer de mama ou de ovário na família -em parente de primeiro grau, do lado materno ou paterno; 2) as judias ashkenazim (originárias da Europa Oriental) porque a incidência nesse grupo é muito alta. Estudos mostram que a mutação aparece em 2% dos judeus ashkenazim testados (1 em cada 50 pessoas).
"Sabendo da propensão, a mulher vai fazer exames preventivos com frequência, como mamografia e apalpação, porque, se doença se manifestar, poderá ser controlada desde o início", diz Reinach.
Quem recebe um "negativo" no teste de DNA não está, porém, livre do câncer de mama. Primeiro, porque esse exame só detecta, por enquanto, os três tipos mais frequentes de mutação, quando os cientistas sabem que existem 150 variações. Do total de mulheres com câncer de mama, apenas 10% têm o "gene defeituoso".
Mario Mourão Netto, 58, diretor do Departamento de Mastologia do Hospital do Câncer da Fundação Antonio Prudente, diz que a maioria dos casos não é hereditária. "Existem outros fatores de risco, como dieta, influência do meio ambiente, alterações hormonais, mulheres com mais de 35 anos sem filhos, mulheres que menstruaram precocemente (antes dos 10 anos), ou tiveram menopausa tardia", explica Mourão.
O Hospital Israelita Albert Einstein está se preparando para fazer também o teste de predisposição ao câncer de mama. O oncologista Sérgio Daniel Simon, 47, responsável pelo projeto, diz que os exames começarão em junho. "Já estamos cadastrando os interessados, mas ainda falta chegar um aparelho dos EUA", diz Simon.
O médico pretende montar uma equipe com psicólogos, oncologistas, além do pessoal de laboratório. "O acompanhamento psicológico é importante porque esse tipo de problema familiar gera situações conflituosas. Surgem sentimentos de culpa, os que têm teste negativo sentem alívio, enquanto os que testaram positivos sentem raiva. Orientamos também as pessoas para que não se desesperem, para que não encarem o teste como um atestado de câncer ou de morte", diz.
Com histórico de mais de um caso de câncer de mama na família, a professora primária Dinorah Silva Rubio, 29, fez o exame de DNA por recomendação médica. "A gente nunca imagina que dá para saber antes. Me interessei porque poderia estar me cuidando desde já", afirma.
Dinorah ainda não recebeu o resultado e "está muito ansiosa". "Se der negativo, será um alívio muito grande. Mas, se der positivo, vou fazer um controle mais rotineiro, porque, se surgir a doença, vou pegá-la no início."
Ossos frágeis
Todos os exames podem ser feitos em qualquer idade. Mas, no caso da osteoporose, o ideal é fazer até os 25 anos, antes que o pico de massa óssea seja atingido (quantidade máxima de massa óssea que uma pessoa acumula do nascimento até a maturidade do esqueleto). A doença, que está associada à menopausa e ao envelhecimento, leva ao enfraquecimento dos ossos e risco de fraturas.
Segundo Reinach, o acúmulo adequado de massa óssea durante o desenvolvimento do esqueleto é a forma mais precoce de prevenir a osteoporose, principalmente em crianças que têm parentes com a doença. "Com o exame, o paciente pode se orientar para uma maior ingestão de cálcio, manutenção do peso adequado e atividade física", diz Reinach.
A mutação que indica a propensão a osteoporose acontece no gene do receptor de vitamina D. A pessoa que possui mutação nesse gene retém menos cálcio no osso. "Com menos cálcio, a osteoporose aparece mais cedo", diz.
A bióloga Sílvia Groto decidiu fazer o teste por ter uma tia com osteoporose em estado avançado. Ela trabalha no laboratório de Reinach e serviu como "cobaia" há dois anos. "Muitas funcionárias ficaram com medo de fazer o exame, mas eu não me arrependo", diz.
Doadores de rim
Outra predisposição genética detectável nos novos testes que chegam ao Brasil é para o rim policístico (com cistos). A doença provoca insuficiência renal e altera a composição do sangue, podendo provocar morte prematura devido a aneurismas intracranianos.
Os sinais clínicos (pressão alta, mal-estar, alteração no exame da urina, canseira constante e pele amarelada) aparecem entre 30 e 40 anos, mas é possível retardar os efeitos se houver um acompanhamento no início da doença.
Segundo Reinach, o teste é recomendado para 1) portadores da doença, para saber a possibilidade de ela se manifestar em parentes; 2) mulheres grávidas (durante o pré-natal); 3) pessoas que têm irmãos portadores da doença e 4) doadores de rim.
Elias David-Neto, 42, professor-assistente do Departamento de Nefrologia do Hospital das Clínicas, diz o teste pode ser importante para intensificar o controle sobre a saúde de um portador do gene que leva à doença.
"O primeiro sintoma é o aumento da hipertensão arterial. Com o teste, pode-se passar a controlar a pressão desde cedo, evitar infecções e fazer tomografias preventivas, já que a doença provoca uma alta incidência de aneurismas cerebrais", afirma.
Segundo o nefrologista, o rim policístico afeta entre 0,1% e 0,2% da população, e o filho de um portador do "gene defeituoso" tem 50% de chances de desenvolver a doença.
Isso não significa, no entanto, que tem a doença vá sofrer de complicações renais. Em alguns casos, apesar de ter cistos no rim, eles não provocam nenhum problema à saúde.
David-Neto apenas não concorda com o teste de predisposição genética durante o pré-Natal. "Mesmo que a criança apresente o gene mutante, não faz sentido a mãe fazer um aborto. Ela pode não vir a ter complicações por causa da doença e, mesmo que tivesse, elas só apareciam depois dos 30 anos. Até lá, quem sabe já não poderemos substituir um gene mutante por um 'saudável'", afirma.
Reinach confirma que hoje só é possível detectar a propensão, não dá para corrigi-la. "Talvez, no futuro, a terapia gênica possa consertar o gene mutado."
Polêmica entre médicos
O quarto teste feito pelo Laboratório Genomic -para infarto-, que será lançado em maio, não é consenso entre os especialistas.
Segundo Reinach, pesquisas mostram que 35% dos infartos do grupo chamado de baixo risco (magros, não-fumantes, com colesterol baixo) estão relacionados a uma variação do gene que regula a produção de uma enzima -a conversora de angiotensina (ACE, na sigla em inglês)- que regula a pressão arterial. Reinach explica que o teste é tecnicamente mais simples, portanto, mais barato (R$ 200) e o resultado sai mais rápido (dez dias).
O professor-titular do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais, Sérgio Danilo Pena, não acredita na eficácia desse teste. "Não conheço bons marcadores para infarto do miocárdio. O grau de predisposição que esse teste mede é mínimo. Um teste de colesterol é muito mais significativo", afirma.
Pena diz que chegou a fazer esses exames, mas decidiu abandoná-los porque, em vez de ajudar, "eles criariam mais problemas aos pacientes".
O consultor de empresas François Moreau, 62, fez o teste há seis meses e o seu resultado foi positivo -o que significaria três vezes mais chance de ter infarto de miocárdio.
Fumante há 45 anos, Moreau diz que aumentou os cuidados com a saúde, mas não mudou seu estilo de vida.
Depois do teste, viajou 10 mil km de carro pela Argentina com a mulher e dois filhos. "Passamos por muitas regiões sem médicos por perto", conta.
Ele diz que está controlando regularmente a pressão arterial e diminuindo o cigarro. "Sou de uma geração influenciada pelos artistas de cinema. Quando estou atravancado de trabalho, fumo um maço, mas hoje, por exemplo, só fumei quatro cigarros," conta.
Com oito filhos entre 12 e 45 anos, Moureau não pensa em pedir aos filhos que façam o exame. "Os mais velhos são independentes e sabem que eu fiz o teste. Quanto aos mais novos, não vou procupá-los com isso agora."
O executivo Mário Masagão, 39, também recebeu um resultado positivo no teste para infarto. Fumante há 20 anos, com um ritmo de trabalho estressante e histórico de infarto na família, Masagão diz que o exame serviu como "um alerta para melhorar sua qualidade de vida". Passou a fazer exercícios duas vezes por semana e passou de um maço para dez cigarros por dia. Sobre o trabalho, diz que diminuiu sua média para "apenas" dez horas por dia.
Retirada preventiva
Enquanto no Brasil as discussões envolvendo questões genéticas são incipientes, nos EUA elas já passaram a estágios bem pragmáticos.
O principal problema dos norte-americanos -que chegam ao exagero de extirpar os seios preventivamente- são as seguradoras de saúde. Teme-se que elas comecem a exigir exames de DNA para fazer o plano, que cobrem mais caro dos que apresentam alguma predisposição genética ou que se recusem a dar cobertura para pessoas com distúrbios hereditários graves.
O jornal "The New York Times" trouxe em fevereiro a história de uma mulher, não-identificada, que testou positivo para o gene de câncer de mama e decidiu retirar preventivamente os dois seios.
A seguradora não pagou a operação, alegando que a mulher tinha uma predisposição à doença quando fez seu plano de saúde. Ela fez a cirurgia assim mesmo e os patologistas descobriram depois, nos exames dos tecidos, um tumor maligno que não havia aparecido nas mamografias. "Nos EUA você pode até sobreviver ao câncer de mama, mas não sobrevive se não tiver um seguro saúde", disse ela.
Uma legislação federal regulamentando o assunto entrará em vigor em julho, mas, enquanto isso, os pacientes têm mantido os resultados dos exames em sigilo, impedindo os seus médicos inclusive de anotá-los nas suas fichas.

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