São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997
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"JN" entra na era do cinismo ilustrado

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O "Jornal Nacional" está em lua-de-mel com o país. A operação de limpeza de imagem do nosso telejornal mais famoso -que começou já faz tempo, com a troca da direção do jornalismo e a substituição da dupla Cid Moreira e Sérgio Chapelin por apresentadores descomprometidos com o passado nebuloso da emissora- parece ter rendido nas últimas semanas um resultado que superou a mais otimista das expectativas.
A comoção e revolta geral causadas pela exibição das imagens de pancadaria policial em Diadema e Cidade de Deus subitamente transformaram o "JN" num veículo da cidadania, no porta-voz dos injustiçados, numa arma poderosa contra o abuso, o arbítrio e a impunidade.
A Globo, cuja imagem historicamente sempre esteve ligada a interesses mais ou menos inconfessáveis, a negócios escusos, a intrigas palacianas e outros segredos cinzentos de cúpula, viu-se de repente do lado de cá, unida ao elo mais frágil, defendendo a sociedade contra o Estado, as luzes contra as garras entrevadas de Leviatã.
A direção da emissora percebeu rapidamente que havia acertado o alvo. Informes publicitários veiculados pela própria Globo ou espalhados pelas principais revistas e jornais do país estamparam: "investigação, independência, denúncia -Jornal Nacional, verdades que mexem com o país".
No embalo desse marketing agressivo, o "JN" abriu sua edição da última segunda-feira "denunciando" a prostituição infantil. Como não havia, como nas duas semanas anteriores, nenhuma imagem disponível de algum boçal de farda espancando inocentes, o "JN" resolveu investir num assunto com retorno certo: meninas pobres de 11, 12 ou 13 anos que vendem seus corpos para senhores provectos por 10 ou 15 reais.
Aqui as coisas se complicam e toda a ambiguidade que cerca a operação de limpeza do jornalismo global vem à tona. É como se um escândalo já tivesse rendido seus dividendos e fosse preciso "produzir" outro para esticar a lua-de-mel com o país.
É claro que a prostituição infantil é uma ignomínia. É claro que isso merece o nosso repúdio. Mas também é claro, como no caso da violência policial, que isso não é novidade e que toda a indignação do "JN" começa a parecer oportunista quando passa a ser produzida em série e divulgada em doses calculadas e homeopáticas.
Será que não estamos assistindo a uma nova forma de mercantilização das nossas mazelas sociais? Cada tragédia vale quanto rende em pontos no Ibope; depois, que venha a próxima e assim infinitamente. Não estamos trocando uma forma de hipocrisia por outra, mais sofisticada? Não estamos nos tornando, no rastro do "JN", apenas cínicos ilustrados?
Vale a pena reproduzir aqui a fala de William Bonner na última segunda-feira, depois que o "JN" mostrou a reportagem sobre as meninas prostitutas: "O que essa violência tem de pior é que ela não faz barulho. Não tem o ruído seco de um tiro nem o grito desesperado da vítima. A prostituição infantil é um escândalo silencioso e, nas delegacias, nos legislativos, nos governos, quem não ouve prefere também não ver. Por isso, é preciso quebrar o silêncio, gritar contra a prostituição infantil, e as autoridades responsáveis que tentem dormir com esses gritos no ar".
Nem seria preciso comentar. Talvez Bonner acredite no ator canastrão que declamou essas frases tão bem decoradas. Ou será que não era Bonner, e sim Cid Moreira, fantasiado do colega que o substituiu, quem estava fazendo a sua volta triunfal, para provar que, assim como o Brasil, o "JN" é capaz de fazer uma revolução cosmética para continuar sempre igual.

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