São Paulo, segunda-feira, 21 de abril de 1997
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Sem terra, sem ilusões, no coração do Brasil

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Os sem-terra ganharam a simpatia do país. Não me lembro de nada parecido. Talvez as grandes manifestações estudantis de 68, as greves operárias no ABC. Nem elas podem rivalizar com um movimento que ocupou o imaginário popular durante algumas semanas na principal rede de TV.
Quando vinha para o hotel, passei por centenas de tochas iluminando a Esplanada. Por todos os cantos vi gente com bandeiras e bonés vermelhos. Nos bares e salões só se fala nisso: os sem-terra chegando de todos os lados.
Adolescentes, sonhamos com os camponeses cercando as cidades. Talvez o melhor fosse não ter sonhado, para não submeter a realidade a tantas comparações. Nem ouvir os discursos.
Mas a realidade está aí, como uma rocha. Quem são aquelas pessoas com chapéus de palha na praia, para quem grita aqui na Esplanada o homem do carro de som? Estamos sós na escuridão do planalto, um travesti se agacha para consertar o salto alto.
Sinto que cairá papel dos prédios, que a cidade irritada com a reforma administrativa também vai protestar. E virão os metalúrgicos, os estudantes, e eu anotarei tudo, verei tudo para contar ao meu sonho como, de fato, tudo aconteceu.
Há dias, fui ao Pontal do Paranapanema. Tantos pês, creio que interessariam a Guimarães Rosa. No Pontal do Paranapanema... Está lá o Morro do Diabo, e os sem-terra querem construir uma fucularia. Sim, uma fucularia, que nos obriga a buscar correndo um dicionário e transformar em farinha.
Na adolescência, o líder camponês era Francisco Julião. Um dia ele visitou o Rio e o jornal me designou para cobrir sua visita à favela. Ele ficou impressionado com a pobreza.
No Pontal do Paranapanema tive a impressão de que as marchas, invasões, lutas judiciais são apenas um lado da história. Nos barracos cobertos de lona escura, falava-se na produção, no milho que colhiam, na dificuldade de vendê-lo, no plantio do feijão.
Era como se houvesse um espetáculo permanente que não podia parar, sessões coincidindo com as chuvas, o inverno. Ouvi uma conversa já de quem está na terra, convive com ela, revolve suas profundezas, consuma o milagre da produção.
E daqui a pouco, quando realmente houver um espaço para todos, o principal estará aí: gente trabalhando, preocupada com o arado, o caminhão que furou o pneu, a chuva que não chega.
Sempre haverá lutas, "companheiros, precisamos", "companheiros, não vamos tolerar" etc., mas o essencial já está ali no Pontal do Paranapanema, onde comemos grandes peixes, o trabalho cotidiano, o corre-corre, as crianças chorando... Drama de pequenos proprietários.
Não excluo traumas, grandes revoluções, não quero esvaziar a história de todo o seu potencial de surpresas. Sinto apenas que este filme da reforma agrária está chegando ao fim. Se ainda não chegou, pelo menos alguém já me contou o final, na amplidão do Paranapanema.
É como se visse meninos e meninas brincando na calçada e agora, na Esplanada do Ministério, fosse ao casamento deles. Julião, Conceição, Rainha acabarão se fundindo com as rugas dos lavradores curvados diante da terra, colhendo suas plantações. Esta página, estou seguro, será virada na história do Brasil.
Claro que estou ficando velho e que talvez até já tenha morrido. Isso acontece nas longas marchas. Foram muitas chacinas, incêndios, mutilações. A reforma agrária não é um piquenique. Isso também não impede que se festeje um dia aqui em Brasília, onde o filho chora e a mãe não ouve.

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