São Paulo, sábado, 26 de abril de 1997
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"Colonus" celebra o rito da morte de Édipo

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

"O jardim de Colonus é a igreja sagrada... com os membros de nossa congregação fazendo os personagens." Começa assim, e com um breve relato em português da trama que se segue, "The Gospel at Colonus", até aqui o melhor da Temporada de Outono do Sesc.
E o que vem a seguir, até mais do que a tragédia de Sófocles (ou a trama da tragédia, já que se trata de adaptação, com texto e letras do diretor Lee Breuer, do grupo americano Mabou Mines), é um ritual. Como descreve o programa, "uma jornada dominical da igreja pentecostal batista americana".
É de uma estranheza deliciosa ouvir de deus, em tragédia grega, por quem acredita e celebra o ritual religiosamente, em cena.
"Édipo em Colonus", a tragédia grega de dois milênios, é revista como se o palco -em São Paulo, o "palco" extenso e envolvente, ao ar livre, do parque da Independência, no Ipiranga- fosse a igreja sagrada, de fato.
Como se o rito fosse o mesmo dos batistas negros, a contar e celebrar uma lenda sagrada e, no limite, também cristã.
O Mensageiro, também com as falas de Édipo, aqui já destronado, cego, o "amaldiçoado rei de Tebas", é interpretado por um reverendo. Um pastor batista, Earl F. Miller, em atuação que faz esquecer que poderia ser Morgan Freeman o intérprete do papel -ele não veio por estar em filmagens.
Também Teseu, que cumpre parte importante, ainda que não central, é um reverendo, Carl Williams, de voz e interpretação extáticas, como de resto o espetáculo.
O sincretismo de "The Gospel at Colonus", à primeira vista extravagante, com estranhezas como a leitura do texto como bíblico ("o livro de Édipo"), mostra-se o mais espontâneo e adequado já na primeira entrada do coro -obviamente, um coro batista, The Institutional Radio Choir, nova-iorquino.
É um musical, poderia ser descrito como uma ópera, com os personagens centrais interpretados por vozes da tradição musical negra dos Estados Unidos, em músicas e direção musical de Bob Telson.
No descampado do parque, diante do Museu do Ipiranga, debaixo de Lua ainda cheia, aos poucos com a neblina carregada da noite muito fria de outono, neblina que tomou o espaço e delineou a iluminação, foi um crescente arrebatamento, encerrando "The Gospel at Colonus" em catarse rara no palco.
Religiosos talvez mais do que artistas de formação técnica, ainda que certamente dotados de técnica desenvolvida, na voz como também na interpretação, as quatro dezenas de artistas viviam a tragédia com uma autenticidade incomum. "Realismo" nenhum.
O ridículo da tragédia, sem qualquer embaraço, com lágrimas e júbilo na mesma proporção. Terminando, aliás, com o verso cantado e gritado, entre choro e alegria: "Eu estou chorando. Aleluia!".
A morte de Édipo, isolado no jardim ou bosque de Colonus, distante e se negando a voltar a Tebas, é pranteada e celebrada. Um rito.
É inesperadamente popular, beirando o populismo, para a vanguardista companhia Mabou Mines, de espetáculos mais camerísticos e experimentais. Mas aqui o diretor Lee Breuer certamente deixou-se levar pelo elenco.
Não há maior requinte cenográfico, em parte porque o parque já compõe o bastante, visualmente (nas apresentações em Nova York, um telão de nuvens e montanhas dava ares de épico hollywoodiano). Mas é esperar para se deixar arrebatar pelos fogos e celebrar com todos.

Peça: The Gospel at Colonus
Quando: hoje, amanhã e domingo, às 21h
Onde: parque da Independência, Ipiranga (informações pelo tel. 273-1633)
Quanto: entrada franca (convites retirados antecipadamente)

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