São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997
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Crianças relacionam Deus a azares diários

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando ouve o ruído de um carro na madrugada, Gabriela, 9, sente o coração aos saltos. Sua casa fica numa curva não sinalizada de um bairro da zona norte, e sua cama está separada da rua apenas por uma parede. Três carros já bateram na casa.
Gabriela tem medo que Deus mande um carro derrubar a parede. "Sempre que desobedeço à minha mãe fico com esse medo."
Gabriela frequenta a Escola Municipal Vereador Antonio Sampaio, na zona norte da cidade.
Nove coleguinhas ouvidos da 3ª e 4ª séries -entre 8 e 12 anos- disseram que Deus "está vendo tudo" e que pode castigá-los.
No Colégio Rio Branco, uma escola de classe média alta de Higienópolis, oito de dez crianças ouvidas disseram a mesma coisa.
Para todas elas, a "bronca" mais dura, em forma de palmadas ou proibições, vem sempre dos pais. Mas é Deus quem pode puni-las das formas mais variadas e inesperadas. Entre as crianças da escola pública, Deus é sempre mais cruel. "Deus entortou meu dedo", diz Elionney, 9. "Eu estava correndo na sala e um menino caiu sobre minha mão. Foi castigo."
Liviane, 9, estava apagando a luz "para assustar os outros" quando colocou o dedo nos fios desencapados. "Tomei um choque, de castigo. Fiquei grudada, gritando, até que dois homens me tiraram."
Roseli, 12, diz que o pai é bravo, mas que tem mais medo de Deus. "Se você não estuda, pode cair na rua ou ter dor de barriga. Mas Deus só castiga para o nosso bem."
Compreensivo
Para os estudantes do Rio Branco, Deus parece mais compreensivo. "Se faço um erro, meu pai vai me bater. Já Deus vai ter piedade", diz Marcos, 9. Seu colega Cauê, 10, acha que Deus perdoará se você for à igreja e se confessar.
Daniel, 9, acredita que as pessoas pagam pelos erros na próxima encarnação. "Quem joga comida fora, vai nascer pobre na outra vida."
Os medos -que são causas internas do estresse-, assumem formas diferentes, de acordo com o meio em que a criança vive.
As do Colégio Rio Branco não andam com os vidros do carro aberto e têm medo quando alguém se aproxima no farol, mesmo que seja criança. "O menino tinha um caco de vidro enorme na mão e ameaçava minha mãe", diz Juliana. 8. Quatro crianças relataram assaltos sofridos por familiares.
O medo de ladrão, que pode sequestrar ou matar, é comum nas crianças pobres e nas ricas.
"A gente morava na favela e um homem estava empurrando a porta", conta Elionney. "Aí a polícia veio e matou o homem."
Quando está vendo TV e os pais dormindo, Gabriela, 9 -aluna do Rio Branco-, diz que tem medo de tudo. "Acho que alguém vai entrar pela janela e me pegar."

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