São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997
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A questão agrária

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Na ótica do governo a reforma agrária teria perdido seu conteúdo histórico, tendo na atualidade escassa importância econômica e mesmo política. Por trás desta visão está o argumento de que as mudanças recentes no país, ao desvalorizar a terra como ativo, fragilizaram o latifúndio que, nas palavras do presidente da República, estaria agonizante.
O tiro de misericórdia seria dado pela nova legislação sobre o ITR (Imposto Territorial Rural), que, num prazo curto, exerceria um efeito praticamente confiscatório sobre as terras improdutivas. A conclusão implícita é que a desmontagem da estrutura latifundiária se daria "naturalmente" por meio de "estímulos ao mercado de terras" e a intervenção estatal só seria requerida para a solução de problemas e conflitos localizados. Esse diagnóstico do governo falsifica as questões centrais, inclusive a natureza estrutural da necessidade da reforma.
A reforma agrária não se destina a aplacar o potencial de conflito embutido na atual conjuntura do agro, mas sim a desfazer a condição objetiva de exclusão e marginalização da maioria da população rural, produzida sobretudo nas últimas três décadas pelo processo de transformação capitalista acelerada da agricultura brasileira.
Marcado pela expansão desordenada da fronteira agrícola, sem ruptura do iníquo padrão fundiário, os resultados desse processo são conhecidos: ao mesmo tempo que expandiu extraordinariamente a produtividade e a capacidade produtiva agrícola em algumas regiões do país, aumentou notavelmente a exclusão social a par com a concentração econômica e fundiária.
Esse é o problema de fundo que revela a natureza estrutural do conflito atual, do qual a nossa sociedade infelizmente só se apercebe quando toma consciência das tensões dele resultantes, explicitadas na violência contra os trabalhadores do campo.
O potencial de conflito só readquire visibilidade nos anos recentes quando, pela primeira vez depois de 1964, o movimento camponês alcançou, por meio do MST, uma expressão social e uma capacidade de mobilização que possibilitam viabilizar reivindicações legitimadas, questionando simultaneamente a inércia do Estado diante do problema agrário e da hegemonia do conservadorismo latifundista nas instâncias de representação da sociedade, consolidada na Constituinte de 1988.
Confundir essas manifestações da crise com suas causas tem consequências práticas relevantes. Reduz a reforma agrária à dimensão de política compensatória, de corte assistencialista, desqualificando a importância de políticas ativas e abrangentes de reestruturação fundiária, emprego e renda. Obstaculiza visões e gestões inovadoras de um novo padrão de desenvolvimento da agricultura que possibilite a reversão real e permanente do atual quadro de exclusão e desigualdade social. Obscurece a percepção da opinião pública sobre a importância da pressão reivindicatória pela terra como fator de avanço democrático da reforma. Induz atitudes de autoritarismo institucional e ações direcionadas a isolar e esvaziar o movimento social. Isso é o que vem fazendo o governo, mais preocupado com o controle burocrático do processo agrário do que com seu efetivo aprofundamento.
A reforma agrária tem um conteúdo econômico de uma atualidade dramática, pelo menos para a maior parte da população excluída, para a qual o acesso à terra representa a única alternativa concreta de emprego produtivo e de geração de renda. Convém não esquecer que a população rural, apesar da rapidez do processo de urbanização, ainda é hoje em torno de 35 milhões maior, em termos absolutos, do que em 1950.
Uma reforma agrária articulada com uma política de desenvolvimento territorial e complementação agroindustrial constitui também uma das poucas opções para a dinamização político-econômica do interior do país, das cidades de pequeno porte que gravitam basicamente em torno da atividade agrícola.
A existência de 3.300 municípios com menos de 25 mil habitantes dá uma idéia aproximada da extensão desta "economia interior". Desta perspectiva, a reforma agrária é uma necessidade presente e não só de caráter social.
Quanto à agonia do latifúndio, é melhor creditá-la ao entusiasmo do presidente com seu próprio discurso supostamente modernizante. O latifúndio, como o país, também mudou, mas não perdeu sua força política. Pelo contrário, as cerca de 35 mil propriedades que controlam mais da metade da área em estabelecimentos representam hoje uma mescla de interesses tradicionais e modernos -de dentro e fora da agricultura- cuja convergência se expressa, entre outras coisas, no peso e atuação da bancada ruralista no Congresso.
Isso para não mencionar as conexões entre os interesses agrários tradicionais e as diversas instâncias do poder local que explicam, pelo menos em parte, várias aberrações: a impunidade dos mandantes e executores de assassinatos de trabalhadores rurais; a perseguição judicial a líderes do movimento camponês; a liberdade acintosa com que operam grupos armados de e por latifundiários; a liberdade nas avaliações judiciais da terra improdutiva; e a própria ineficácia na cobrança do ITR.
O pensamento agrário oficial atribui ao financiamento um obstáculo central ao ritmo da reforma. O governo estaria cumprindo as metas traçadas, mas não teria recursos para fazer mais. "Se a sociedade quer acelerar a reforma deveria estar disposta a aceitar novos impostos" (sic). Também aqui o pensamento oficial é falacioso.
Os custos por família poderiam ser substancialmente reduzidos se o governo usasse sua esmagadora maioria no Congresso para alterar alguns aspectos da atual legislação agrária, que permite a inclusão de pastagens e matas naturais como benfeitorias e assegura ao latifundiário uma indenização muito superior ao valor fiscal da terra.
A legislação atual não apenas é mais liberal que o anterior Estatuto da Terra como transforma a expropriação em uma verdadeira "indústria". O nível de custos indicado pelo governo está inflado pela inclusão de itens, como serviços de infra-estrutura e sociais, que correspondem a gastos gerais de desenvolvimento que o Estado teria a obrigação de realizar independentemente da reforma agrária.
Com uma estrutura de custos mais adequada e privilegiando aquilo que é a essência da reforma agrária -a redistribuição da terra- seria possível duplicar ou triplicar o número de famílias assentadas anualmente sem provocar nenhuma catástrofe nas finanças públicas.
Os gastos anuais representariam, provavelmente, uma quantia inferior às despesas correspondentes a um ou dois meses de juros da dívida pública. Portanto, o problema não é a falta de recursos, mas a escassa prioridade que o presidente parece atribuir à reforma agrária, que vê como coisa do passado, em cuja necessidade realmente não crê, salvo como atenuadora de conflito, e cuja importância considera absolutamente marginal do ponto de vista dos interesses centrais que seu governo representa.
Esse divórcio entre os interesses populares e as prioridades do governo explica por que o presidente afirmou (antes da chegada da marcha dos sem-terra a Brasília) que "o problema da terra, tão antigo quanto o país, não poderá ser resolvido por um governo. Talvez por uma geração".
Obviamente, ninguém pretende que os três ou quatro milhões de famílias sem terra sejam assentados em um ou dois anos; mas é claro que o ritmo estabelecido pelo governo é totalmente insuficiente, pois requereria quase meio século para absorver a atual população dos "sem terra", na hipótese, remota, que esta conseguisse sobreviver a tão longa espera.

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