São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997 |
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"Papai era um sonhador"
SHEILA SCHVARZMAN
Falando de Humberto Mauro, não há histórias de longas conversas. Era um pai às antigas, sério e que se ausentava muito devido ao trabalho. Na memória de menino, lembra sem tristeza do período de extrema penúria da família, quando o pai saiu da Cinédia (em torno de 1933) e as crianças dormiam em esteiras, pois não havia dinheiro para camas. Só lembra que "as esteiras eram ótimas. Brincávamos, dormíamos e de manhã era só enrolar". Peripécias de quem tinha a ousadia de fazer e, sobretudo, viver de cinema no Brasil dos anos 30. * Folha - Paulo Emilio Salles Gomes, autor da biografia de Mauro, acha que seu pai teve três mestres na carreira: Pedro Comello, Adhemar Gonzaga e Roquette-Pinto. José de Almeida Mauro - Todo mundo tem: o Adhemar foi mais um mestre da técnica. Ele frequentava Hollywood. Deve ter trazido muito ensinamento que o papai deve ter aprendido. Depois, vem aquilo que está dentro da pessoa. Assim nasce o diretor. Quando você vai dirigir, tem o filme na cabeça. O diretor é como um maestro que organiza a orquestra dele. Se está desafinada, ele ouve. Folha - Beatriz Bojunga, filha do antropólogo Roquette-Pinto, conta que seu pai conheceu Mauro vendendo enceradeiras no Museu Nacional, em 1936. Mauro - Acho que sim, porque ele conheceu o Roquette no Museu Nacional, e era naquela época em que não se ganhava dinheiro e ninguém fazia nada, e ele tinha que se virar. Como o vovô (Caetano Mauro) tinha muita ligação com a General Eletric, com certeza arrumou para que ele vendesse essas coisas. Depois que encontrou com Roquette, tudo melhorou, porque ele começou a trabalhar fixo, passou a ser funcionário público. Mas papai trabalhava sem visar o dinheiro. Folha - Ele gostava de Getúlio Vargas? Mauro - Nunca vi o papai falar mal do Getúlio ou de nenhum presidente, porque a gente trabalhava ali, os presidentes entravam, saíam, e a gente continuava. Folha - Vocês iam ao cinema para ver o que estava sendo feito? Mauro - Não. Papai não ia ao cinema. Não gostava. Era muito caseiro. Gostava de fazer. Folha - E o sr., de quem gostava? Mauro - Às vezes, eu via um filme em preto e branco só por causa da limpeza, da beleza da imagem. Eu vi "Pérola" (fotografado pelo mexicano Gabriel Figueroa) três vezes com o Lima Barreto num cinema da Lapa. Ele era muito meu amigo. O Lima tinha grandes idéias. Ele leu "O Cangaceiro" para mim umas quatro vezes, e saiu uma beleza. Papai achava que o Lima devia fazer o roteiro e deixar outro filmar, porque ele ia se entusiasmar tanto que acabaria, sabe como é... Folha - O sr. não trabalhou com Lima Barreto? Mauro - Ele gostaria que eu filmasse com ele, me pediu que eu fosse para a Vera Cruz. Eu dizia: "Lima, ali não dá, é um lugar em que ninguém ri. Esse lugar não pode ir pra frente". Eu estive lá, todo mundo sério, de cachimbo. Depois eu entrei num cenário, onde o cara estava repetindo a cena 80 e tantas vezes. E geralmente eles usam a primeira, porque é quando todo mundo está descansado! Folha - E Mauro não quis ir também? Mauro - Ele foi lá visitar, foi convidado, e, não sei se é piada ou se ele disse isso realmente ao Zampari: "Aqui está tudo muito bonito, mas você caiu num erro muito grande, porque, antes de fazer a Vera Cruz, você devia ter feito uma cadeia de cinemas lançadores. Depois dela pronta, aí você podia fazer o seu filme, dentro da sua casa, na cozinha, que ia dar dinheiro, mas do jeito que está aí, você vai acabar vendendo bilhete na rua São Bento". Folha - O sr. fotografou "O Canto da Saudade". Como foi a realização do filme? Mauro - A gente trabalhava tudo naquela base de "não tem lâmpada". Tínhamos que escolher o ambiente mais claro. Trabalhávamos com luz natural e na base de rebatedor e muito pouco material. Papai queria fazer uma homenagem a Volta Grande. Era sonhador. Não fez filme para ganhar dinheiro, nem nada. Filmamos eu e o papai. Era tudo na base da camaradagem. Na cena do sanfoneiro, que tem não sei quantas pessoas fazendo o papel de nota musical, papai não gastou um tostão. Os fazendeiros eram todos amigos. Um levou comida, outro deu condução, foi uma farra. A música, ele foi comprando conforme o dinheiro. E eu tenho a impressão que o Villa-Lobos também não cobrava. Ele falou com o Villa-Lobos: "Vou botar o 'Canto das Enxadas'. Quanto tem aí? Duzentos réis? Então pára aí a música, que daqui pra diante eu não posso pagar mais". Folha - O que o senhor acha das comemorações planejadas para o centenário de Humberto Mauro? Mauro - Acho muito bom, porque se deixassem por nossa conta, ia ter uma missa e fim de papo. Nós estamos muito satisfeitos. Texto Anterior: O último filme ao fim do dia Próximo Texto: Ritos da Insensatez Índice |
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