São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997
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O arqueólogo do mundo moderno

MANUEL DA COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na primavera de 1962, a revista argentina "Sur" publicava um ensaio sobre o filósofo alemão Theodor Adorno assinado por um jovem florentino de apenas 20 anos. Era a primeira vez que seu autor, Roberto Calasso, tinha um texto editado fora da Itália -uma estréia internacional em alto estilo, disputando as páginas da prestigiosa revista fundada por Victoria Ocampo com escritores como Borges e Kaváfis.
Hoje, 35 anos depois, Calasso é uma das figuras mais importantes do meio intelectual europeu. Seu único livro de ensaios -"Os 49 Degraus" (que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras)- percorre com erudição assombrosa as obras de Stendhal, Flaubert, Nietzsche, Karl Kraus, Freud, Reich, Brecht, Benjamin, Heidegger e Céline.
Além disso, Calasso é diretor da Adelphi, editora de Milão que mantém o catálogo mais ousado da Itália -publicando numa mesma coleção autores díspares como Giorgio Manganelli e Georges Simenon, Emil Cioran e Mário de Andrade, Fernando Pessoa e Oliver Sacks, Bruce Chatwin e Wittgenstein.
Não bastasse, Calasso escreveu quatro romances -"L'Impuro Folle", "La Rovina di Kasch", "As Núpcias de Cadmo e Harmonia" (Companhia das Letras) e "Ka"- cuja matéria ficcional permeada por citações de filósofos, personagens históricas e mitos antigos leva a uma frequente e óbvia aproximação a Umberto Eco.
Entretanto, seria melhor falar de Calasso como um "anti-Eco".
O semiólogo da Universidade de Bolonha transmite a imagem de um escritor em paz consigo mesmo, de um professor merecidamente ilustre que, nas horas vagas, brinca de escrever romances ("O Nome da Rosa", "O Pêndulo de Foucault", "A Ilha do Dia Anterior"), divertindo os leitores incultos com tramas policiais e desafiando os leitores cultos a decifrar as fontes de sua sofisticada biblioteca pessoal.
Calasso é o contrário do diletante e do erudito profissional. Sua aversão ao meio acadêmico transpira em cada ensaio de "Os 49 Degraus". Seus romances são narrativas ásperas, nas quais a voz impessoal do narrador interrompe a ação, impedindo qualquer fruição estética.
A prosa ensaística de Calasso é sanguínea e nervosa, a apologia visceral de um saber atento às constelações de sentido que todo texto faz nascer. Seus romances, em contrapartida, parecem unívocos, escritos por um autocrata que não deixa nenhuma fresta para a interpretação "desviante" do leitor.
Existe aí uma estudada incongruência. No ensaio "O Caráter Egípcio da Arte", por exemplo, Calasso se deslumbra com a definição adorniana da arte como "magia livre da mentira de ser verdade". Porém, ao assumir uma dicção literária própria, ele parece querer controlar nos mínimos detalhes a recepção de seus romances, a verdade alquímica de sua poética, a ponto de colocar, no final de "La Rovina di Kasch" e "Ka", notas que explicam de onde foram retiradas suas citações -como se a imprecisão da leitura fosse mais mortal do que qualquer angústia da influência, justificando a confissão de sua origem.
Entretanto, é justamente nessa tensão singular entre o leitor multifacetado de "Os 49 Degraus" e o narrador tirânico de "As Núpcias de Cadmo e Harmonia" que está a matriz intelectual e a força narrativa de Calasso -e não podemos entender uma sem contemplar a outra.
A raiz de seu ensaísmo são os autores da tradição antimetafísica alemã -como o Nietzsche que, analisado no ensaio "Monólogo Fatal", realiza a "simulação ativa" de sua loucura, a encenação de um real que, duplicado por um "batalhão móvel de metáforas", confere perenidade ao absurdo e afirma a fatuidade de toda representação; ou então o Karl Kraus que, na esteira de Parmênides, denuncia o niilismo da separação platônica entre aparência e verdade (tema do ensaio "Da Opinião").
Mas, ao mesmo tempo, essa dissolução da identidade acolhe a expectativa de uma nova totalidade -não mais a totalidade do idealismo ocidental (alicerçado sobre um princípio perdido no passado e que determinaria um futuro messiânico), mas a totalidade do presente, dos "agoras" benjaminianos, da sedimentação de sentidos que, libertos da "mentira de ser verdade", produzem as condições de sua própria existência, os pressupostos de sua própria ação.
Leitor de Nietzsche, Calasso não se satisfaz com a contemplação da morte de Deus, mas procura cumprir o papel do demiurgo, tornando-se ele mesmo um criador de mitos. São os mitos gregos de "As Núpcias de Cadmo e Harmonia" e os mitos védicos de "Ka" -com suas estruturas repetitivas e hipnóticas. Ou então os mitos propriamente modernos de "La Rovina di Kasch" -que identifica a razão histórica (encarnada por Talleyrand, o artífice da Europa pós-napoleônica) à danação de uma tribo africana que renega os deuses- e de "L'Impuro Folle" -romance no qual o presidente Schreber, paciente que propiciou a teoria freudiana da paranóia e que é tema de outro texto de "Os 49 Degraus", marca a irrupção do delírio no âmago da consciência européia.
É esse, talvez, o significado de sua obra literária e ensaística: a criação de cosmologias reparadoras para um mundo em que qualquer ilusão de perenidade, de totalidade, se tornou vazia. Como o Benjamin evocado no ensaio que dá nome a seu livro, Calasso se oculta sob uma cabala de imagens e citações, compondo uma alegoria do espírito que nega a si mesmo em sua errância pelo caráter fragmentário da arte e do pensamento.

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