São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997
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Um inédito de Callado

ANTONIO CALLADO

No curso dos últimos três ou quatro decênios estive com Miguel Arraes em várias e muito diferentes ocasiões. Por exemplo: o Arraes que conheci em 1963, governador de Pernambuco, impondo ao país a imagem nova de uma esquerda nada sectária e extremamente criadora, e o Arraes com quem estive na Embaixada da Argélia no Rio, em 1965, ex-detento político na ilha de Fernando de Noronha e na Fortaleza de Santa Cruz, às vésperas de embarcar para o exílio na África.
Impossível imaginar circunstâncias mais diferentes. Mas em nenhuma das duas, ou em qualquer das várias outras ocasiões potencialmente dramáticas em que encontrei Arraes, o vi amedrontado, em hora de tempestade, ou arrogante, ao voltar o bom tempo.
Aliás, para completar esse breve perfil do amigo Arraes, eu diria que se trata de um dos homens mais contidos, mais bem-educados que me foi dado conhecer. Para nós, brasileiros, eu diria que ele fala em tom extraordinariamente baixo. Em momentos de crise, aconselho ao jornalista que estiver entrevistando Arraes que abra bem os ouvidos, que preste atenção. O mais importante é dito, às vezes, por ele em tom de quem fala, digamos, ao tempo: vai ou não chover, ficará ou não nublado à tarde. E Arraes pode estar falando em tiro e não em trovoada, em fechamento do Congresso e não do horizonte meteorológico. Se a entrevista é coletiva, ainda vai. Mas a sós com ele, Arraes, com seu "uisquinho" na mão, é bom ouvir tudo, anotar o máximo. O homem é imperturbável, daqueles que, mesmo quando estão narrando ou evocando passagens realmente duras de suas vidas, o fazem com um distanciamento raro. Quando, por exemplo, confinado pelo Exército em Fernando de Noronha, Arraes teve permissão para ir a Recife assistir ao casamento de sua filha Ana Lúcia, chegou à igreja como prisioneiro. Podia abraçar a filha. E voltar, como prisioneiro, à ilha. Como era dia dos pais, os filhos pequenos de Arraes haviam feito desenhos para entregar ao pai, que não viam desde a prisão. Os desenhos foram confiscados pelas autoridades militares.
Esse tratamento mesquinho, que vai ficar na história de Pernambuco e do Brasil, Arraes o relembra como se comentasse algum fato histórico já um tanto nublado pelo passar do tempo. Em relação aos seus próprios, que seja -me perdoe a comparação. Mas a façanha dele -três vezes governador- só se compara à de Muhammad Ali e Evander Holyfield, campeões três vezes.
Existe, ainda, para quem só conhece Arraes de palanques e festas, o contador de casos. Eu o acompanhei, como amigo e jornalista, numa longa viagem de automóvel até um comício no interior. Arraes era, então, candidato a governador pela segunda vez. Quando cansávamos os dois de falar de política, ele rememorava casos ocorridos na zona de sertão onde passávamos. Vou só contar o melhor. Um dos "coronéis", outrora mandões e soberanos naquele sertão, era coiteiro de Lampião. Quer dizer: o coronel e o cangaceiro tinham um "gentlemen's agreement". Lampião respeitava a fazenda do coronel e, quando necessário, nela se abrigava. Certa vez, quando acoitado na fazenda, Lampião precisou se afastar para assunto urgente. E deixou na fazenda, por uns dias, Maria Bonita, que -vejam só as peças que o destino prega às pessoas- se apaixonou pelo Ford Bigode que o fazendeiro acabava de comprar. Maria quis aprender a dirigir. E desde a primeira lição de motorista começou a fazer olhos ternos ao coronel. Que entrou em pânico.
"Maria parece que era mesmo bonita", terminou Arraes, mas o coronel pretextou um mal súbito e foi passar dias no Recife. Mal maior que ter um caso com a mulher de Lampião não havia.
Arraes não conheceu pessoalmente o poeta Carlos Drummond de Andrade. Mas citou o poeta inúmeras vezes, em discursos, no prefácio que fez, ao voltar do exílio, para a segunda edição do meu livro "Tempo de Arraes": "Quanto ao Brasil, volta-nos sempre -e sempre citamos- o apelo de Carlos Drummond de Andrade, no seu 'Hino Nacional': 'Precisamos descobrir o Brasil (...)/ se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens/ por que motivo eles se ajuntaram/ e qual a razão dos seus sentimentos. (...)/ Nenhum Brasil existe. E caso existirão os brasileiros?'±".
Gosto de imaginar o encontro que não houve entre esses dois homens reservados, de fala cordial e mansa. Drummond tinha muito do sertanejo de Araripe, e Arraes podia ter sido criado na paisagem férrea de Itabira. E o traço familiar que une os dois é, naturalmente, o sentimento do mundo e do lugar que o Brasil tarda tanto a ocupar neste mundo. Não estou exagerando a força desse sofrimento compartilhado, que calou tão fundo em Arraes.
Eleito pela terceira vez governador de Pernambuco, em 1994, Arraes pronunciou o belo discurso que é um dos últimos reproduzidos neste volume. O discurso acaba assim:
"Ao longo dos tempos, o povo de Pernambuco legou aos brasileiros lições de unidade política e capacidade de trabalho. Saberemos mais uma vez honrar este passado. Tenho o que tinha antes, ao apresentar-me hoje a esta Casa, pela terceira vez, enriquecido pelo que me deu a vida e pelo que me marcou o destino. Nada além, como ensinou o poeta, do que duas mãos, o sentimento do mundo e a certeza renovada na capacidade do povo em fazer sua História".

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