São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997
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Começa a nascer uma nova utopia

GILBERTO DIMENSTEIN

Recebi esta semana por e-mail a seguinte pergunta de um leitor: qual a principal lição que aprendi nestes quase dois anos vivendo em Nova York?
Pensei nas minhas pesquisas, os livros que ando lendo (e os que não estou lendo, mas deveria), os contatos na Universidade Columbia. Não é por aí.
A lição não sai da universidade nem dos livros. Mas de andar na rua, minha paixão favorita em Nova York, atividade que exige mais pernas do que cérebro.
É a seguinte: estava profundamente iludido sobre a capacidade de o Brasil virar uma nação civilizada.
Não tirei essa conclusão a partir das virtudes e conquistas dos americanos. Ao contrário -dos seus graves defeitos, visíveis nas ruas. *
Os números desses defeitos transbordaram por todos os lados nesta semana, provocados por um encontro que se inicia em Filadélfia.
Durante três dias, vão desfilar ali algumas das mais importantes personalidades dos EUA, independentemente de partidos ou ideologias. Entre eles o presidente Bill Clinton e os ex-presidentes, acompanhados de executivos das maiores empresas e dirigentes de organizações não-governamentais. Vão ser comandados pelo general Colin Powell; embora sem cargo, é político de maior prestígio do país.
Na simbólica Filadélfia, onde surgiu o primeiro país fundado no princípio da liberdade, eles tentam desenhar uma nova utopia.
É capaz de estarem criando um novo marco histórico, capaz de influenciar o mundo, numa redefinição das responsabilidades e papéis públicos -ou, quem sabe, preencher o vazio de ilusões provocado pela desmoralização do comunismo e baixo entusiasmo pelo capitalismo.
*
Nesta nova utopia o governo manda dizer que acabou, que não confiem mais nele para enfrentar a pobreza. As empresas informam solenemente que o capitalismo não resolve questão social.
A redenção viria quando os americanos mais abastados adotassem um pobre. Serviriam como tutores ou mentores de crianças com dificuldade de aprendizado, ensinando-o matemática, ciências, história, computadores. Ou para reciclagem de desempregados.
Os padrinhos evitariam que jovens entrassem em gangues, drogas ou meninas grávidas, criando quase laços familiares.
Por trás da utopia, calculam que se cada americano apto a ser voluntário (falam em 200 milhões) de três horas por mês, seriam 600 milhões de horas por ano. Um batalhão para enfrentar, por exemplo, 15 milhões de crianças marginalizadas.
*
Por que, afinal, números como esses me fizeram constatar a ilusão?
Reconheço, claro, os notáveis avanços provocados pelo Plano Real, aumento de consciência social dos empresários, melhoria na qualidade de prefeitos, governadores e presidente da República. Nunca o Ministério da Educação teve tanta força; disseminam-se maravilhosas experiências municipais como a bolsa-escola, criada pelo PDT. É, porém, muito pouco.
O salário mínimo aqui é dez vezes maior do que o brasileiro. Estão nos EUA as melhores faculdades do mundo, mais importantes laboratórios científicos, mais ricas e influentes empresas.
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A mentalidade das elites empresariais é infinitamente menos tacanha do que a mentalidade de nossas elites. São doados bilhões para filantropia.
Essas doações patrocinam milhares de mais criativas e eficientes experiências sociais do estilo Mangueira ou Projeto Axé, exemplos de cooperação entre governo, empresários e comunidades -ingredientes que compõem a utopia de Filadélfia.
*
Mesmo com todos os seus bilhões, os americanos carregam enormes manchas de pobreza e violência -a começar por seus 600 mil integrantes de gangues, responsáveis pela metade dos homicídios americanos. Os níveis de mortalidade infantil entre negros americanos são bem piores que os de Chile, Cuba ou Sri Lanka, no sul da Ásia.
Imagine, então, um país como o Brasil onde são raros os empresários que olham além de seus negócios. Líderes sindicais estão presos ao corporativismo, cofres públicos, comprometidos com pagamentos de dívidas e funcionários, o Congresso caminha a passo de tartaruga em reformas que deveriam estar a jato.
*
Não significa que o Brasil esteja fadado à injustiça e miséria. Mas a verdade é que, por mais que se faça, é pouco -e o resultado, mais lento do que imaginava quando me mudei para cá.
*
PS - As empresas americanas instaladas no Brasil estão longe de ter o mesmo empenho social que demonstram nos EUA, apesar dos bons exemplos. É uma atitude discriminatória e desrespeitosa. A Reebok, por exemplo, tem um modelar programa de direitos humanos; não sei de nada de relevante que faça no brasil, único país em que vence a Nike.

Fax: (001-212) 873-1045
E-mail gdimen@aol.com

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