São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Fim de tudo, ou só do século?

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nosso fim de século retoma uma temática que parecia, desde uma ou duas décadas, devolvida ao século 19, que a inventou: a do fim. Fala-se em fim do emprego, do comunismo, da arte, da educação, de profissões, ciências, práticas, costumes etc. Será mesmo pertinente essa insistência?
O primeiro século a apostar fundo na convicção de estar no fim de uma época e no começo de outra foi o 19. Hegel, então, anunciou o fim da história. O filósofo alemão sucedia aos pensadores do progresso, que haviam surgido no século 18, e arrematava as teses deles anunciando que, se houvera progresso, este se concluía em seu tempo. Isso punha fim a boa parte do que o homem até então tinha conhecido, e o fazia porque se chegava a uma forma de Estado e razão quase insuperáveis.
Marx deu conteúdo mais preciso a essa tese do fim da história. Seria o fim da história entendida como luta de classes. Toda a opressão terminaria quando cessasse a exploração do homem pelo homem. Somava-se, às idéias de Hegel sobre o fim da história, a célebre tese de Marx sobre Feuerbach: "Os filósofos até hoje interpretaram o mundo de várias maneiras, chegou a hora de mudá-lo".
E o 19 se esmerou em propor os mais variados fins. Para Nietzsche, por exemplo, chegava o "fim do homem", a que sucederia uma nova figura, a do super-homem -embora este nada tenha em comum com as imagens usuais que dele nutrimos. Falou-se em fim da arte.
O curioso é que nas últimas décadas, até porque nem a filosofia, nem a arte, nem a luta de classes sumiram, o tema do "fim" parecia ter perdido relevo. A ele só se prestava homenagem da boca para fora. Isso até que Fukuyama, no final da década passada, apareceu com sua tese neo-hegeliana do fim da história.
O gênio desse escritor foi retomar um tema que havia passado aos marxistas e dar-lhe um viés liberal. O fim da história não seria o advento do socialismo, mas a consolidação do capitalismo liberal como o regime mais adequado ao ser humano.
Tudo mudou de direção. Até então, a esquerda marxista, fosse ela autoritária ou democrática, acreditava ter de seu lado o sentido da história, já que sabia para onde ela tendia (uma outra forma de dizer que "os fins justificam os meios"). Contudo, com o comunismo virando passado, democracia e capitalismo tornam-se sinônimos e ditam os rumos.
É esta uma das razões fortes para hoje se falar tanto em "fim". Porque todo fim significa um arremate (consolidando o que se completou) ou um novo começo (e o enterro do que findou). Mas há outra razão possível: é que estamos, como dizia antes, num fim-de-século.
Luto histérico
Este é o segundo fim-de-século da história. Não basta terminar um século para haver um fim-de-século. É preciso que, junto com as datas, finde um estilo de vida, e que esse final esteja bem marcado, enquanto continua indefinido o que vai substituí-lo. Foi isto, em seus traços essenciais, o "fin de siècle" do 19, sobretudo na França.
Porque, se o fim do século 18 já se marcou por uma ruptura -a queda do Antigo Regime-, ele viveu mais o clima do começo que o do fim. Mesmo os termos que indicavam morte, como Antigo Regime, só nasceram da fortíssima consciência de que surgia uma nova sociedade.
Apenas no fim do século 19 se firma a idéia de uma época alegre, mas de uma alegria ruidosa, superficial, que se acompanha da perda de referenciais e do luto histérico por uma sociedade que não se sabe como substituir.
Aqui, vê-se, fim não é positivo. Nada tem de hegeliano, de coisa que se completa. Daí que não faltem críticas ao "fin de siècle", porque substituiria o ético e o político pelo estético. Não concordo com essa crítica moralista, que reduz o estético à mera forma bela, e contra ele exalta conteúdos previamente determinados do que é bom.
Mas, de toda forma, nos fins de século -e este talvez seja um- fica-se sem bússola. Um exemplo: o avanço da tecnologia pode acabar com o mundo que conhecemos, para criar um inteiramente novo. A Malásia está construindo na selva uma capital "high tech", em cujos serviços, públicos ou não, praticamente não se emitirá papel.
É o fim da papelada burocrática, não por ser o fim da burocracia, mas por ser o fim do papel. E, no entanto, ao mesmo tempo, há quem pense que a alta tecnologia esteja chegando, ela, ao fim, porque deixará de ter interesse para as pessoas comprar a cada ano um "upgrade'. O grande exemplo é o avião comercial supersônico: o Concorde foi um fracasso de clientela.
Este é um exemplo de duas perspectivas opostas sobre o que termina: bom sinal de mundo sem certezas.
Essa incerteza é o traço mais importante de nossa época. Daí que, pessoalmente, eu prefira a sensibilidade do fim-de-século aos fins que, arrogantes, ora se proclamam de uma coisa, ora de outra. Nada é mais típico de nosso tempo que o modo como o calmante se tornou universal. Não há melhor comércio que o de tranquilizantes, bússolas e sentido.

Texto Anterior: Fukuyama acabou com a história
Próximo Texto: TWAIN; DIREITOS HUMANOS; DIREITO AUTORAL; CALLADO; COLÓQUIO; CLARICE LISPECTOR; LANÇAMENTO 1; LANÇAMENTO 2
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.