São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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A miséria do jornalismo brasileiro

JUREMIR MACHADO DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Li, em Paris, o pequeno livro vermelho de Pierre Bourdieu. "Sur la Télévision", que provocou comoção nos meios intelectuais franceses, causou-me admiração e repugnância. O "sociólogo da agricultura", como dizem os detratores do teórico da noção de "campo", sintetizou tudo o que há muito penso sobre o jornalismo. Nisto nada há de espantoso ou de arrogante de minha parte, pois Bourdieu enfileirou banalidades. O mais insuportável no livro é a defesa da sociologia positivista, capaz de se assemelhar à matemática, e o horror ao diálogo fora do domínio das especializações.
François Furet gosta de ironizar que somente Bourdieu nasceu em plena autonomia e tudo pode compreender e explicar. O seu livro é um acerto de contas com, entre outros jornalistas franceses, Jean-Marie Cavada e Guillaume Durand. E uma confissão de raiva contra o que rotula de antiintelectualismo. No geral, Bourdieu tem razão. Assim, provocou um belo efeito de assinatura. O mesmo discurso feito por um desconhecido entraria na categoria das choradeiras dos ressentidos. Ao atacar a mídia, Pierre Bourdieu conquistou um latifúndio de espaço jornalístico.
A lógica do "fait divers"
O jornalismo brasileiro também traduz a quase totalidade dos acontecimentos em termos de "fait divers". Constatação que faz eco às conclusões de Bourdieu. Jean Baudrillard, entretanto, 26 anos antes, havia escrito o mesmo. "La Société de Consommation" mostrou que o "fait divers" é a categoria mitológica fundamental da nossa época. Ao retornar ao Brasil, no percurso entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre, li a Folha, no avião. A Ilustrada apresentava imponentes títulos (irônicos) do tipo: "Angélica troca de roupa 10 vezes no Palace", ou algo do gênero. O jornal noticiava também, com base em pesquisa, sobre a bunda mais clonável do Brasil.
Sem rabugice, não é difícil perceber a pior lógica do mercado recobrindo as pautas de repórteres e colunistas. A revista "IstoÉ", por exemplo, disposta a nunca mais repetir a intelectualizada época da "IstoÉ/Senhor", resolveu tornar-se simplesmente "IstoÉ/Caras". O fenômeno está disseminado. O vírus do "fait divers" faz mais estrago do que o da vaca louca. A Folha pode, com razão, argumentar que mantém o melhor caderno cultural do Brasil. O excelente Mais! sabe andar na contramão, mesmo se, nos últimos tempos, converteu-se num bastião radical dos Haroldos e serve, com insistência, pratos apocalípticos (desespero elitista capaz de mesclar esquerda e direita no mesmo anseio de distinção) aos leitores, assinados por Harold Bloom, Robert Kurz etc. Há quem diga que com o título "Atenção à barbárie" nenhum artigo deixaria de ser publicado no Mais!. Falta diversidade.
Por ser considerada pelos intelectuais como o melhor jornal brasileiro, a Folha merece ser criticada (dialógica). Fora do Mais!, escrito por colaboradores, o padrão de texto parece contemplar leitores com cérebro esponjoso. Se em vários veículos o desleixo predomina, na Folha a camisa-de-força imposta pelo Manual da Redação está prestes a destruir um projeto que já apaixonou os seres pensantes nesta terra de ninguém. Os intelectuais nunca farão o menor reparo a tudo isso. Questão de estratégia e prestígio. A Folha, bourdivinamente, distingue quem nela publica. Tomo o caminho oposto, justamente por admiração.
Lógica do best-seller
Nenhum jornal brasileiro escapa da hegemonia dos números. Ridicularizado pela maioria dos jornalistas, Paulo Coelho reina nos suplementos culturais. Cada vez que comete um novo livro, todos se apressam em conceder-lhe quilômetros de páginas, afogando-se para divulgar em primeira mão uma fatia da obra. Contra as listas de mais vendidos, o jornalismo não se bate. O livro, pobre coitado, é um meio dependente, quase sem autonomia. Só existe quando aparece no jornal. Assim, muitos jornalistas de pouca cultura, ressalvadas as exceções de grande competência, julgam sumariamente textos que nem sempre compreendem.
Sem "fait divers" não há quem possa. Dois milímetros abaixo da superfície, com boa vontade, começa a chatice para os jornalistas, que não imaginam o quanto são chatos esses jornais repletos de notinhas pitorescas. Banalizado, um tal tema não encontra espaço de discussão. As carpideiras de Frankfurt limitam-se às velhas críticas e aos discursos de legitimação pela autoridade moral ou intelectual. Escolados, os jornalistas culpam os patrões, que de santos não têm nada. Mas o álibi funciona. Escravos da norma, os falsos inconformados deixam em casa ou nos bares o desejo de profundidade. No Brasil, o meio é de fato a mensagem, pois o conteúdo dificilmente aparece. O mecanismo da servidão voluntária transforma militantes petistas, agressivos nos cafés, em singelos cordeiros na hora de escrever um texto. No fundo, acreditam na objetividade, que sempre volta pela janela. Adoram fazer curto, simples, fácil. Transferem para o leitor as suas necessidades pessoais.
Prêmio detetive
No lugar de comunicar a complexidade da vida, os jornalistas, de modo geral, reduzem-na ao simplismo dos formulários que simulam artigos e reportagens. Está mais do que em tempo de fazer uma reforma agrária no jornalismo brasileiro. Alguns colunistas (Arnaldo Jabor, Elio Gaspari, até há pouco Paulo Francis, esse polemista discípulo do racista Le Bon sem o confessar, Luis Fernando Verissimo etc.) dominam o mercado da opinião. Grandes jornais aceitam repetir mediocremente, a exemplo de jornalecos interioranos, as colunas que pipocam por aí.
Que dizer da televisão brasileira, do padrão Globo de sonolência? A técnica dissimula a indigência. E os críticos da Globo consideram-se no apogeu profissional quando contratados por Roberto Marinho. Nada mais. Os prêmios para jornalistas privilegiam os detetives. A análise e a interpretação aparecem em segundo plano. Mestres na política de avestruz, os jornalistas silenciam sobre obras de colegas poderosos, que desferem impunemente os seus tijolos semiliterários contra o público sem que nada se diga a respeito da qualidade (ou falta de) dessas gordas obras. Autista, a mídia não sai do seu mundo. Só vê a si mesma.
O cartesianismo da incultura chafurda na modernidade do passado. O grande poder da mídia consiste em tornar invisíveis os seus adversários. Na hegemonia do vulgar, "Veja" amassa milhares de pessoas com a mesmice de textos feitos em série. Jornalismo pasteurizado. Assuntos pseudocientíficos ganham destaque. Bom é anunciar a descoberta do gene da homossexualidade, do suicídio, da alegria, do talento para jogar futebol, da disposição para ganhar o Esso aos 24 anos de idade etc. Caricaturas contra a eterna caricatura do clip-jornalismo.
Impulsionados pela televisão, os jornalistas correm atrás dos não-leitores. Em consequência, poucos se interessam pelos leitores. De certa forma, por aqui todos (mesmo os veículos mais elitistas) seguem o modelo esquálido do "USA Today" -foto grande, texto curto. Atenção (à barbárie): o texto corre perigo de extinção. Cada aldeia alimenta o seu Senhor Ninguém, conforme a expressão de Musil. A mídia constrói falsos talentos e asfixia, por omissão, verdadeiros criadores. A agenda inercial coloca sempre os mesmos em circulação. Quem disso discorda, claro, é ressentido.
Jornalismo exige brilhantismo, não apenas arrogância, ousadia (o oposto do arrivismo dominante), "equilíbrio de antagonismos" e liberdade argumentativa absoluta. Hoje, o último reduto de intocáveis é a mídia, cujo objetivo principal parece ser o de convencer os leitores de que só o besteirol é interessante. No Brasil, dizia o mestre Sérgio Buarque, até a inimizade pode ser cordial. Salvo quando se trata de criticar o trabalho da imprensa. Pena. Alguns saltariam para o ano 2050 se rompessem com o vanguardismo transformado em retaguarda.

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