São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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A prova da verdade

RENATO JANINE RIBEIRO

Está para ser mudada a Lei de Imprensa: antes tarde do que nunca! Em 1985, quando o PMDB firmou com a Frente Liberal o pacto que levaria ao fim do governo militar, esta Folha notou que o acordo não previa a revogação ou sequer a revisão da Lei de Imprensa ditatorial. Ela continuou em vigor, embora, é certo, menos aplicada que antes.
Das disposições que regem a imprensa, a mais odiosa é talvez a que pune quem acusar de criminoso o chefe de Estado, sem lhe permitir alegar e provar que o governante realmente cometeu o crime em questão.
Qualquer pessoa que se sinta caluniada por mim, porque a acusei da prática de um crime, pode processar-me. Mas me isento de punição se provar que ela cometeu mesmo o crime. Só que isso, que se chama prova ou "exceção" de verdade, não se permite contra o presidente.
Pior: o mesmo privilégio vale para qualquer governante estrangeiro. Assim, por dizer a verdade sobre o general Pinochet, então ditador do Chile, o deputado Francisco Pinto foi cassado e passou seis meses preso, em plena "transição democrática" do general Geisel.
E note-se que o autor dessa disposição no Código Penal, embora datasse de uma ditadura (a Vargas), não teve coragem de enunciar esse privilégio com todas as letras. Escondeu-o num cipoal de alusões jurídicas. Divirta-se o leitor com a hipocrisia:
"Admite-se a prova da verdade (diz o art. 138 do Código Penal, parágrafo 3º), salvo: ... II - se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 141)". E é este inciso I do art. 141 que cita o presidente da República, ou chefes de governo estrangeiro! O legislador sabia que fazia coisa indecente, e tentou dissimular-se quanto pôde...
Evidentemente, isso é quase letra morta. Não fosse assim, teriam ido para a cadeia todos os jornalistas que cobriram o caso Collor, para lembrar um presidente que acabou condenado pela corte competente, o Senado, em crime de responsabilidade. E estariam presos todos os que tecem certos comentários, por exemplo, sobre o presidente do Iraque, sua excelência o general Saddam Hussein -que, afinal, é "chefe de governo estrangeiro".
Mas entendo que esse privilégio dos chefes de governo não é indefensável só do ponto de vista moral. Se os tribunais lessem com atenção o Código Penal, nunca o teriam aplicado. Porque o delito é "caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime..." (art. 138, grifo meu).
Vê-se que sua essência não está na mera atribuição, a alguém, de um crime -mas na falsidade de tal acusação. Não há, pois, como excetuar nosso chefe de governo ou qualquer outro. Para haver calúnia, a acusação de crime precisa ser falsa.
O legislador do Estado Novo foi tão hipócrita que acabou se desdizendo, na redação da lei. E isso porque deu velho golpe, o de dizer uma coisa na cabeça do artigo e desfazê-la nos parágrafos, ou reconhecer um direito em princípio (por exemplo, no Código Civil ou Penal) e regulá-lo ou suprimi-lo no detalhe, isto é, no respectivo código processual.
Mesmo assim, é bom retirar esse entulho de nossa legislação. Mas, sobretudo: é mais que hora de mudar a forma de redigir as leis. Esse truque, dito "técnica legislativa", que consiste em ocultar o que se quer num emaranhado de remissões a números que ninguém sabe o que significam, não convém a um regime democrático, no qual o primeiro dever do legislador é formular leis que os cidadãos entendam, para que as cumpram -ou que lutem por sua mudança. Podemos seguir o exemplo de Giscard d'Estaing, que, ao assumir a Presidência da França, em 1974, exigiu de seu ministro da Justiça que redigisse as leis "em francês", rompendo com o jargão incompreensível do Direito.
Devemos também terminar com a tradição formalista que acaba dando maior importância ao procedimento que ao princípio. E talvez não haja nada menos aconselhável, eticamente, do que esse artifício que reside em dizer uma coisa, alto e bom som (no artigo da lei), para depois negá-la, numa associação entre dois incisos obscuros.

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