São Paulo, terça-feira, 13 de maio de 1997
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KASPAROV E O COMPUTADOR

O campeão mundial de xadrez Garry Kasparov perdeu a série de partidas contra Deep Blue, o computador da IBM. A disputa reavivou dois velhos clichês: o do embate do homem contra a máquina e o mito sobre a genialidade enxadrística.
Não houve uma importante batalha da inteligência humana contra um engenho artificial, como foi difundido pela propaganda do evento. Kasparov jogou contra um computador criado e programado por homens, equipamento aperfeiçoado em décadas de trabalho da comunidade científica. A memória de Deep Blue foi alimentada com a experiência de grandes enxadristas; estes, por sua vez, aperfeiçoaram as inovações de gerações de jogadores. Kasparov bateu-se, na verdade, contra o gênio concentrado de milhares de pessoas.
Quanto ao segundo clichê -a genialidade do enxadrista-, já se disse que a grande capacidade de jogar xadrez é apenas isto: habilidade de jogar xadrez. Ela não está necessariamente relacionada de modo positivo às capacidades definidoras do humano: a de compreender o mundo, refletir e criar. O enxadrismo é um aspecto limitado das potencialidades do cérebro do homem, restrito a uma série de operações mentais predeterminadas pelas regras do jogo.
De significativo no caso é o exemplo da permanência do encanto humano por fetiches. Isto é, um objeto ao qual se atribuem características que ele não tem em si mesmo e que recebe culto. Nas sociedades primitivas, essas características eram sobrenaturais. Na que conheceu a tecnologia industrial, o fetichismo confere traços demasiado humanos a objetos como computadores ou mesmo, por exemplo, a extraterrestres. Os supostos visitantes espaciais são sempre antropomorfos; como os humanos, sempre curiosos por outros mundos, resolvem desenvolver tecnologia para visitá-los. Nesse imaginário, o Deep Blue, por sua vez, transforma-se num ser autônomo, o que não é. Na verdade, o jogo de Kasparov com o computador enxadrista mostra mais uma vez a humanidade batendo-se contra seus fantasmas.

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