São Paulo, sábado, 31 de maio de 1997 |
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Autora Caryl Churchill destrói a sociedade inglesa em 'Cloud Nine'
NELSON DE SÁ
Daí a saudação que é preciso fazer à montagem, pelo Grupo de Teatro da Cultura Inglesa, de "Cloud Nine", seu texto mais conhecido, de 1979. Depois dos quatro espetáculos encerrados domingo último em São Paulo, a peça ainda não tem novas representações programadas, mas vale ficar de olho. Não é uma montagem profissional, embora o grupo já venha atuando há mais de uma década. Os figurinos são risíveis, e a cenografia chega a ser infantil (sem contar que foi possível distinguir elementos de outra produção, vista no mesmo teatro). Também as interpretações não podem ser tomadas como acabadas, excedendo-se em timidez e falta de domínio do palco, o que dificulta a própria representação do sarcasmo farsesco tão característica do texto. Mas Churchill tem uma energia tão rigorosa em sua escritura que a montagem acaba, aos trancos, por funcionar. É uma farsa, mas corrosiva, de uma crítica destrutiva da sociedade inglesa. O cenário é uma "plantação" dominada por patrões ingleses em alguma colônia britânica na África, no final do século 19. Como na maior parte das peças da autora, o fundo histórico é pouco mais do que uma desculpa para ela descarregar o seu ódio à injustiça social do presente. Certa vez, ela própria descreveu suas peças como versando sobre "a vida da classe média burguesa e a sua destruição". "Cloud Nine", expressão que significa um estado de felicidade perfeita, nasceu longe de qualquer relação com a África, o colonialismo inglês, ou o século 19. Surgiu de uma oficina de três semanas de improvisação com o elenco da Joint Stock, uma companhia de teatro politizada, esquerdista. O tema era a política sexual, jamais o imperialismo ou coisa assim. E o que se vê no palco já foi mencionado por vezes como uma "comédia de costumes" -como grande parte da nova dramaturgia nos palcos anglo-americanos também é descrita-, mas de um frescor e de uma violência que fazem distanciar do velho gênero, ou do que se convencionou dizer dele. Mas está lá o humor familiar, com traições e hipocrisia, misturado à opressão política. Na casa grande, o patrão trai a mulher com uma bela visitante; a mulher trai o marido com um caçador aventureiro, amigo do marido; o aventureiro é, na verdade, homossexual e sai com o jovem filho do casal e com o empregado negro; a babá, lésbica, é apaixonada pela patroa, mas acaba forçada a casar com o aventureiro, para limpar a imagem dele; o empregado vai entregando todas as ocorrências sexuais ao patrão e, subserviente, defende a morte de seus próprios pais, quando os "nativos" são massacrados. No caminho, o humor é todo de farsa, por vezes grosseira. Há cenas de sexo oral, e o patrão, depois de ver a amante, sai reclamando, "tenho um pêlo na boca". Quando o aventureiro chama o empregado para a cama, avisa: "Não é uma ordem". A sombra da opressão aos colonizados está sempre no ar, mas é da sociedade inglesa contemporânea que Churchill fala. A escritura não é perfeita, nem deseja ser, nem aceita ser. Três anos atrás, no National Theatre, em Londres, que aliás vem promovendo uma temporada de Caryl Churchill, a autora ensinava: "Tem uma coisa terrível acontecendo com a nova dramaturgia hoje, que é quando os autores não conseguem montar as peças, e um teatro dá uma leitura ou alguma coisa assim no lugar, e muitas pessoas dizem a eles como escrever as peças... Dois ou três anos depois, ainda estão reescrevendo. É melhor deixar a peça e escrever outras três." (NS) Texto Anterior: 'Cheque ou Mate' é veículo para Raul Cortez Próximo Texto: O maldito Nelson Rodrigues vira querido Índice |
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