São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
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A intimidade de uma nação

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em uma época marcada pelo pessimismo, às vezes injustificado, é preciso enfatizar o significado do início da publicação da "História da Vida Privada no Brasil", primorosamente editada pela Companhia das Letras, tanto do ponto de vista intelectual quanto editorial. Não é possível realizar empreendimentos dessa natureza sem que haja um campo constituído de historiadores, um público leitor de certa magnitude e forte apoio financeiro.
Embora em entrevistas à imprensa Fernando Novais -diretor geral da obra- e Laura de Mello e Souza -coordenadora do volume ora lançado sobre a América portuguesa- tenham afirmado que evitaram dançar ao compasso da melodia francesa, é evidente essa inspiração, que não pode ser considerada negativa. Não chegou ainda o momento em que o Brasil e outros países periféricos de razoável envergadura cultural tenham alcançado condições de abrir novos caminhos nas ciências humanas de um modo geral e nas tendências historiográficas em particular, a não ser em casos excepcionais. Desse modo, a "História Geral das Civilizações", organizada por Maurice Crouzet, inspirou a "História Geral da Civilização Brasileira", editada por Sérgio Buarque de Holanda e o autor destas linhas, ambas publicadas em português pela Difusão Européia do Livro.
Por sua vez, a "História da Vida Privada", coordenada por Philippe Ariès e Georges Duby, dizendo respeito sobretudo ao Ocidente europeu, inspirou a obra em exame, ambas editadas pela Companhia das Letras. Ressalve-se, porém, que estamos falando de inspiração e não de cópia de modelos. Considerados os autores individualmente, é visível, em alguns casos, a marca original e a influência da historiografia inglesa e italiana.
Fernando Novais é um historiador que não se formou ao influxo das tendências da Nova História, sendo sua obra principal, sob sólida inspiração marxista, dedicada às articulações socioeconômicas entre Portugal e o Brasil, no âmbito da crise do sistema colonial. O ensaio introdutório à obra, de sua autoria, levanta uma série de questões gerais que vale a pena destacar.
Em primeiro lugar, ele ressalta uma insuficiência de muitos trabalhos ancorados na temática da Nova História; belíssimas reconstituições de hábitos, de gestos, de amores, da sensibilidade etc. ficam pairando no espaço, como se nada tivessem a ver com as formas de estruturação da sociedade e do Estado e a organização da vida material. Novais busca evitar este risco, tratando de estabelecer as conexões de sentido entre a formação histórica da América portuguesa, em seus traços mais amplos, e a incerta vida privada. De fato, ele se pergunta se é possível falar de uma esfera de vida privada na América portuguesa. Lembra que, conceitualmente, vida privada contrapõe-se a vida pública, pressupondo o Estado moderno como delimitação. A rigor, só seria possível, então, uma história da vida privada a partir do século 19. No entanto, diz ainda Novais, seguindo as pegadas de Philippe Ariès, se historicizarmos o conceito, alargando as indagações para as manifestações da intimidade em momentos e contextos em que seu espaço ainda não se encontrava plenamente definido, talvez possamos recompor a pré-história da vida privada.
É esse o objetivo do primeiro volume da série. Identificar e analisar a lenta constituição da vida privada, em um quadro colonial marcado, de um lado, pela frágil irradiação do Estado e, de outro, pela existência de uma população esparsa, instável, muitas vezes em constante mobilidade. A isto deve-se acrescentar, sobretudo quando essa população começa a se estabilizar, a presença do escravo, introduzindo uma especificidade fundamental no embrião de vida privada da colônia.
Quando, por exemplo, Laura de Mello e Souza lida com as formas provisórias de existência, voltando-se sobretudo para as expedições dos bandeirantes, o que se verifica é menos uma vivência de vida privada nessas andanças e mais o sonho de volta ao lar, após longas expedições de vários anos. Mas, o que seria o lar, esse centro privilegiado, ainda que não exclusivo, da vida privada? Ronaldo Vainfas aborda a questão, em seu significativo ensaio intitulado "Moralidades Brasílicas", assinalando que, rústicas ou requintadas, as casas senhoriais de outrora ensejam pouquíssimas condições de vivências privadas. Isto decorria da natureza das construções, bem como da convivência promíscua da família senhorial, de agregados e parentes, de escravos obviamente em condição inferior. Vainfas lembra que as imagens dessas casas sugerem movimento, burburinho, comunicabilidade intensa entre os espaços interdependentes.
Daí resulta uma particularidade na vida privada da América portuguesa, provocando, por vezes, uma inversão de espaços, pela qual, o que é aparentemente público por natureza converte-se em privado. Vainfas observa que muitas relações sexuais consideradas ilícitas podiam ocorrer no mato ou à beira de um rio, espaços de certo modo públicos, porém mais aptos a intimidades do que as próprias casas de parede-meia ou cheias de frestas.
É bem verdade que nem sempre podemos generalizar sobre as condições de privacidade relativamente a diferentes classes sociais e a todo um período histórico, bastando lembrar, exemplificando, as diferenças entre a vida urbana incipiente dos primeiros tempos da Colônia e a do Rio de Janeiro, na época de D. João 6º.
Uma dificuldade básica que os autores do volume enfrentam diz respeito à natureza das fontes, problema bem enfocado no estudo de Vainfas e de Leila Mezan Algranti, dedicado às famílias e à vida doméstica. As pessoas que viveram nos tempos coloniais trataram, em regra, de manter a privacidade nessa esfera, guardando-a como algo de íntimo, não suscetível de formalização por escrito e de legado à posteridade, mesmo reduzida ao círculo familiar. Se acrescentarmos a isso o grande número de analfabetas entre as mulheres -cuja sensibilidade é maior para escritos dessa natureza-, fica fácil perceber a ausência dos diários íntimos, das cartas, das histórias de vida que, se existiram, não chegaram até nós. O contraste é, aliás, marcante entre os tempos coloniais e a época contemporânea, em que as memórias de "pessoas comuns" se multiplicam, destinando-se não só ao âmbito familiar como a uma sociedade atraída pelo conhecimento do que no passado se tinha como secreto ou irrelevante.
Disso deriva a necessidade dos autores recorrerem, com maior ou menor êxito, a fontes tradicionais como os testamentos, os insípidos Livros de Razão, conjunto de lançamentos e anotações no qual o chefe da casa dirige a ele próprio as informações que julga importantes, principalmente para o controle de suas finanças. Às vezes, excepcionalmente, um documento com um tom mais íntimo se destaca do conjunto, como parece ser o caso do "borrador" redigido em meados do século 18 na Bahia, por um fidalgo arruinado, que Mary Del Piore utiliza longamente no ensaio "Ritos da Vida Privada". Vainfas, por sua vez, no seu estudo das "moralidades brasílicas", apóia-se sobretudo em documentos da Inquisição, mas é bastante consciente dos riscos dessa fonte e trata de utilizá-la criticamente. Com a vantagem de chegar ao cenário historiográfico após alguns antecessores ilustres, ele evita, assim, o viés em que incorre Paulo Prado, cuja vinculação da "tristeza brasileira" à "luxúria", em "Retrato do Brasil", parece ter decorrido de uma aceitação literal dos documentos inquisitoriais.
No que diz respeito à definição do que seja vida privada, os responsáveis pela obra evitam estabelecer distinções entre o conceito desta e o de vida cotidiana -tema objeto de longo debate entre os especialistas-, acrescentando um subtítulo ao volume, intitulado "Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa". Acertadamente, recusam uma definição estreita que identifique vida privada apenas com vida familiar. Os diferentes autores tomam como campo temático não só a casa e a família, como a sexualidade, certas modalidades de vivência religiosa, a sociabilidade voltada para as leituras e a sedição, embora seja inegável e forte associação entre vida privada, casa e vida familiar.
As várias práticas religiosas não-católicas, desde as africanas, assimiladas à "feitiçaria", às de judeus e marranos, tendem a integrar a esfera da vida privada, à medida que o segredo é um de seus componentes necessários, como decorre do ensaio de Luiz Mott. A esse respeito, aliás, é curioso lembrar que, no Brasil independente, a Constituição de 1824 institucionalizou o caráter privado das religiões não-católicas -naturalmente, sem abranger as africanas, tidas como superstição- ao estatuir que elas seriam "permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma de templo".
Por último, cabe se perguntar das razões do prestígio das histórias da vida privada, no mundo ocidental. Penso que, afora a atração da narrativa, esse prestígio se liga ao reverso da medalha, ou seja, na expressão de Richard Sennett, ao declínio da vida pública. Não só os atores políticos tendem a perder o fascínio nos dias de hoje, para bem ou para mal, como a vivência da população no espaço público se reduziu, à medida que, entre outras coisas, a televisão substituiu a ampla praça dos comícios.
Assim, tanto por suas qualidades intrínsecas, quanto por inserir-se em uma corrente da sensibilidade contemporânea, a "História da Vida Privada no Brasil" representa um marco dos estudos dessa natureza em nosso país, destinando-se a ter um amplo êxito editorial.

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