São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997
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O conflito entre duas lógicas

HÉLGIO TRINDADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Recente biografia da jornalista francesa Brigitte Hersant Leoni, "Fernando Henrique Cardoso - O Brasil do Possível", reintroduz a discussão das relações entre o intelectual e a política. A lógica da política seria incompatível com a lógica do intelectual? Pela primeira vez, na "república dos bacharéis", temos um presidente-sociólogo, acadêmico que obteve reconhecimento internacional. Este é um fato excepcional na tradição politica latino-americana.
Aristóteles definiu o homem como um "animal político" e alguém já ironizou que "a política é o sexo dos intelectuais". O tema, complexo e polêmico, é de grande atualidade. Mas não é novo.
Se o termo "intelectual", com o significado que hoje possui, aparece em meados do século 17, sua primeira substantivação sociológica foi introduzida pelo romancista russo Boborykin, em meados do século 19, para designar um grupo social particular típico da Rússia czarista: o "intelligentsia". Foram, porém, escritores franceses, liderados por Émile Zola, que o politizam com o célebre "Manifeste des Intellectuels" (1898) em favor da revisão do processo contra o capitão judeu Dreyfus. Em nosso século, para além das análises sobre os intelectuais de Gramsci, Mannhein, Bourdieu ou Pecaut, o intelectual-símbolo da militância política foi indiscutivelmente o filósofo Jean-Paul Sartre.
O tema da política e da ciência como vocação, no entanto, tornou-se clássico com as duas célebres conferências de Max Weber (1919), em que defende serem duas vocações profundamente diferentes. A ciência requer humildade e disponibilidade de espírito, e a política está submetida a uma contradição insuperável entre a "ética da convicção e a ética da responsabilidade" (1).
O sociólogo Anthony Giddens, diretor da London School of Economics and Political Science, recentemente questionado sobre o governo FHC, mostra a atualidade do sociólogo alemão: "Max Weber disse que se tem, na verdade, duas escolhas: ou se é um intelectual relativamente puro, ou se é um líder político que necessariamente está envolvido com o poder, a política e todos os compromissos que isto implica". Conclui: "Nisso Weber estava certo, pois parece que normalmente as vidas contemplativa e ativa exigem personalidades diferentes, com algumas poucas exceções" (2).
Esta é a problemática que está no centro do livro sobre FHC. A autora busca enfrentar o problema: "Fernando Henrique é um intelectual na política ou um político no mundo dos intelectuais?". A resposta é pouco convincente: "Os dois estão ligados e são indissociáveis. Fernando Henrique é um intelectual que sempre escolheu a ação política". Intelectuais amigos de FHC dão suporte ao juízo da autora: "A qualidade intelectual e política básica de Fernando Henrique é o realismo" (Roberto Schwarz); ele "não é um intelectual que faz política, mas um intelectual que se transformou em político" (José Arthur Giannotti). Apesar desses argumentos, o próprio FHC se enreda nas lógicas contraditórias ao se considerar "um intelectual que coloca o intelecto a serviço da política". Sempre analiso os fatos com distanciamento e a objetividade do homem de ciência. Isso me dá grande tranquilidade, mas não a paixão que algumas vezes é necessária" (3).
O leitor atento observará que a biógrafa, além de não dissimular sua admiração pelo personagem, não consegue resolver o conflito entre a lógica intelectual de uma carreira acadêmica prestigiosa, com militância político-ideológica compatível, da primeira metade do livro, e a lógica política do intelectual que opta por uma carreira política profissional, culminando com a conquista e exercício da Presidência da República, da segunda metade, na qual a autora tem dificuldades em mover seu personagem nos meandros da política brasileira.
Todos reconhecem a importância da obra do sociólogo Fernando Henrique Cardoso para o desenvolvimento das ciências sociais latino-americanas. Embora não tenha deixado discípulos, seus livros tornaram-se leitura obrigatória de sucessivas gerações de cientistas sociais no Brasil e no exterior. Em sua vasta produção acadêmica sempre valorizou a parceria, desde as primeiras pesquisas sobre a escravidão no sul do Brasil, com Octavio Ianni, passando, no exílio chileno, pelo clássico sobre a dependência na América Latina, com Enzo Faletto, e, ao retornar à política brasileira, pela análise da explosão eleitoral da oposição em 1974, com Bolivar Lamounier (4).
O Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), criado por Cardoso em 1969, como espaço de pesquisa para os professores aposentados da USP pelo AI-5, torna-se também um centro de "ação política". A militância política de Cardoso, nos anos 70, encontrou em Porto Alegre um dos espaços mais abertos do país para a mobilização contra o regime militar, reunindo grandes públicos nas conferências-debate na Assembléia Legislativa do Estado (5). Ao mesmo tempo, na luta pela democratização, os periódicos "Opinião" e "Movimento" tornam-se veículos estratégicos em que Cardoso, juntamente com outros intelectuais de oposição, escrevia regularmente suas análises sobre a conjuntura na busca de alternativas democráticas ao regime militar.
Até esta fase, a biografia retrata o perfil de um intelectual engajado na transição democrática e que mantém sua atividade acadêmica nos grandes centros de prestígio internacional. Entre 1975 e 1981 ministrou cursos e seminários nas Universidades de Princeton, Cambridge, Berkeley e no Collège de France. A série de conferências proferidas em inícios de 1981, em Paris, à convite de Michel Foucault, marca o fim do ciclo propriamente acadêmico de Cardoso, coroado ainda pela eleição para a Presidência da Associação Internacional de Sociologia (1982) (6).
Na segunda metade do livro a autora analisa o novo ciclo em que FHC se torna um político profissional. Sua campanha para o Senado, em 1978, é ainda tributária da anterior militância acadêmico-política de esquerda. Ao assumir a vaga de Montoro no Senado, encerra-se a fase do Cebrap em que "nós nos tornamos sartrianos" (Giannotti), e FHC começa a defrontar-se, na vida política, com a contradição entre as éticas weberiana da "convicção" e da "responsabilidade".
Os depoimentos narrativos ou interpretativos utilizados pela autora não conseguem fazê-la penetrar na complexidade do jogo político real e de bastidores do período. A rápida mudança das arenas e cenários que se sucedem na transição política não ensejam traçar um perfil convincente do político FHC. Somente com recuo histórico e uma visão mais abrangente do processo político real poder-se-ia entender o complexo itinerário político-ideológico de FHC, que faz a travessia dos comícios de massa das "Diretas-Já" ao Colégio Eleitoral com Tancredo; da liderança no Senado à oposição ao governo Sarney; da tentação ministerial sob Collor ao coração do governo Itamar, que com o Plano Real viabiliza sua eleição à Presidência da República.
Seguindo um estilo de fazer política submetida ao "realismo", sua capacidade de negociação e de articulação política o conduzirão a uma ascensão rápida aos mais altos postos do governo federal. Seus posicionamentos políticos adquirem uma tal dinâmica nos campos do discurso ou da ação parlamentar/governamental que a conciliação entre a lógica do intelectual e a lógica da política torna-se quase impossível.
Este é o dilema e o desafio do personagem real: a tensão permanente entre um discurso intelectualmente aceitável para si próprio, para a interlocução política, e a tomada de decisão submetida à moeda real de troca do jogo político em que as relações de interesses contraditórios e de pressões sobre o poder estão submetidos a outra linguagem. As respostas a essa tensão permanente, por vezes, se alternam entre duas arrogâncias intelectuais: a que fascina uma classe política profissional ou fisiológica deslumbrada pela autoridade do discurso acadêmico e a que desqualifica o adversário numa linguagem irritadiça e ofensiva diante da crítica dos opositores.
Nesse corpo-a-corpo permanente, o chefe de Estado perde o distanciamento necessário à condução política e o capital intelectual se consome nos conflitos cotidianos da política, desempenhando, de fato, um ativo papel de primeiro-ministro de um regime parlamentar. Os exemplos de Vargas, JK, De Gaulle ou Mitterrand são a prova de que o estadista se constrói agindo no campo estratégico, buscando definir e implementar suas ações de curto e longo prazo, mas sem explicá-las a cada momento, como faria o professor. Pode o estadista ocupar permanentemente a cena política perante a opinião pública, negociar diretamente com governadores e parlamentares e obscurecer a ação mediadora dos ministros do governo? Ganhará dividendos nas vitórias, mas sofrerá o desgaste inevitável dos revezes.
Esse é o paradoxo do presidente-sociólogo: o chefe de Estado que se tornou primeiro-ministro de si mesmo, com a arrogância do intelectual. Essas questões, que estão no cerne do conflito entre a lógica do intelectual e a lógica do político em FHC, ultrapassam os limites de uma biografia de corpo presente e pressupõem -"sine ira et studio"- uma análise mais abrangente, com o devido recuo histórico, a ser feita no futuro.

Notas:
1. Max Weber, "Le Savant et la Politique" (Plon). O autor considera que dentre os intelectuais são os advogados e os jornalistas que estariam melhor preparados para exercer a profissão de político.
2.Entrevista com Anthony Giddens, Mais! (2/3/1997).
3. Brigitte Hersant Leoni, "Fernando Henrique Cardoso - o Brasil do Possível", pág. 277.
4. Fernando Henrique Cardoso e Bolivar Lamounier (orgs.), "Os Partidos e as Eleições no Brasil" (Cebrap/Paz e Terra), obra em que foram produzidas as primeiras análises acadêmicas sobre os resultados eleitorais em São Paulo e Minas Gerais e publiquei o primeiro estudo sobre os padrões eleitorais do Rio Grande do Sul.
5. Refiro-me ao ciclo de conferências organizados, em Porto Alegre, pelo Cebrap, à convite do então deputado estadual Pedro Simon, em parceria com a Fundação Pedroso Horta do MDB e sob a coordenação do sociólogo André Forster.
6. Nesta conjuntura francesa em que o autoritarismo gaullista fora finalmente batido pelo Partido Socialista de Mitterrand, os ensinamentos para a América Latina eram estrategicamente importantes. Das discussões em torno do tema nasceu o livro coletivo que organizamos com textos de Celso Furtado, Alain Touraine, Georges Lavau e Alain Rouquié entre outros, no qual Cardoso escreve o artigo "A América Latina e o Socialismo na Década de 80", em Fernando Henrique Cardoso e Hélgio Trindade, "O Novo Socialismo Francês e a América Latina (Paz e Terra).
7. Neste sentido, tem razão Alain Touraine, tão otimista nas primeiras manifestações sobre as potencialidades do governo Cardoso, ao reconhecer no prefácio que "foi-lhe mais fácil chegar ao poder do que está sendo transformar uma sociedade na qual os interesses adquiridos se defendem tão bem e muito poucos canais fazem vir à superfície da política os problemas mais graves".

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