São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997
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O PLANO MARSHALL

ALBERTO HIRSCHMAN

Tendo esses dois homens assumido funções e responsabilidades tão parecidas durante o Plano Marshall, fiquei curioso, antes de mais nada, por descobrir o que Bissell e Marjolin tinham a dizer um do outro em seus livros. O resultado dessa pesquisa foi, na verdade, decepcionante. As atividades de Bissel concentraram-se primordialmente em Washington. Talvez isso justifique parcialmente o fato de que o nome de Marjolin nem sequer figure no índice onomástico. Por outro lado, Marjolin reserva algumas palavras bastante calorosas para Bissell. "Em Washington... encontramos novamente com Richard Bissell... Sua grande capacidade intelectual e o ardor de seus sentimentos para com a Europa contribuíram imensamente para o sucesso do empreendimento." Marjolin escolhe palavras igualmente gentis para Paul Hoffman, Lincoln Gordon, Edmund Hall-Patch e, em especial, Eric Roll. Conclui essa passagem sobre seus colaboradores declarando: "Nunca em minha carreira, antes e depois do Plano Marshall, conheci uma equipe internacional motivada por desejo tão intenso de alcançar sucesso em um mesmo empreendimento" (op. cit., pág. 196).
Havia um outro ponto cujo tratamento eu estava curioso por examinar nos relatos de Bissell e Marjolin: a União Européia de Pagamentos, em cujas negociações estive profundamente envolvido. Comecemos com um pouquinho mais de autobiografia. Dispensado do Exército Americano em 1945, comecei a trabalhar no ano seguinte no Conselho do Federal Reserve (Banco Central dos EUA), em Washington, onde minha função inicial era acompanhar os acontecimentos econômicos e políticos na França e Itália. Logo fiquei encarregado de toda a Europa Ocidental e, na medida em que o Federal Reserve tinha um papel na política econômica externa, o Plano Marshall passou a ser minha área de competência. Interessei-me especialmente pelos planos relativos ao Acordo Intereuropeu de Pagamentos e pelas várias tentativas de alargar os canais estritamente bilaterais aos quais ainda se confinavam os pagamentos intereuropeus.
Essa foi a segunda área importante em que se invocou o princípio do Plano Marshall, segundo o qual a Europa deveria apresentar um acordo abrangente sobre a distribuição dos dólares americanos. Antes de mais nada, os países da Europa Ocidental deveriam unir-se e apresentar conjuntamente uma estimativa da ajuda necessária dos Estados Unidos. Essa tarefa foi atingida em tempo razoavelmente curto: o Comitê de Cooperação Econômica Européia foi montado em Paris e finalizou seu relatório em setembro de 1947. Em meados de 1948, tão logo o Congresso votou favoravelmente às autorizações e dotações necessárias, a Europa passou a receber ajuda em grande escala.
A próxima tarefa seria a reconstrução de um comércio multilateral na Europa. Aqui, em princípio, esperava-se também que os europeus apresentassem uma proposta conjunta para aquilo que viria a ser chamado, de forma bastante ambígua, a futura "integração" da Europa. Mas, por então, a sede do Plano Marshall em Washington, bem como sua nova filial em Paris, viviam dias de efervescência burocrática. Juntamente com o que então se rebatizou de Office of European Economic Cooperation (Agência de Cooperação Econômica Européia) em Paris, participavam ativamente do "caldeirão de idéias" que estava sempre à procura das melhores soluções.
Logo percebi que, a fim de adquirir alguma competência nessa área e desempenhar minha função adequadamente, deveria conhecer os verdadeiros formuladores desses programas em Washington. Formavam um pequeno grupo de pessoas próximas a Bissell -uma espécie de "banco de idéias"- que o supria de novas idéias institucionais, e, por intermédio dele, atingia a filial parisiense da nova agência do Plano Marshall -a Economic Cooperation Agency (Agência de Cooperação Econômica). Tornei-me bastante próximo a esse grupo, cuja composição original contava com Van (Harold Van Buren) Cleveland e Ted (Theodore) Geiger. Posteriormente, juntou-se a esse grupo um outro jovem, John Hulley. Tive a oportunidade de passar um bom tempo com essas pessoas, de forma que meu escritório foi praticamente transferido do Federal Reserve para o novo prédio da Agência. Gostei muito de participar desse "ativismo" do grupo, que constantemente inventava novas funções para o Plano Marshall e seus dólares.
A título de exemplo, e por ser oportuno no presente momento, quando o "euro" está em vias de ser lançado, lembro que em dezembro de 1949 preparei um documento intitulado "Proposta para uma Autoridade Monetária Européia", no qual apresentava um levantamento bastante detalhado de programas conjuntos sobre a ordem fiscal, monetária e cambial, que poderiam ser adotados gradualmente sob a orientação de um futuro Banco Central Europeu. O documento circulou no âmbito da Economic Cooperation Administration - ECA (Secretaria de Cooperação Econômica). Uma nota escrita por Van Cleveland apresentava-me como membro do conselho do Federal Reserve e explicava que o texto era divulgado "em resposta a uma consulta informal". Cleveland era um dos membros do "banco de idéias" e se apresentava nessa nota como "secretário de Programa" da ECA. A nota teve o cuidado de acrescentar que as opiniões ali expressas "não eram necessariamente as do conselho do Federal Reserve" (esse trabalho não foi publicado, exceto em uma tradução italiana -"Proposta per una Autoritá Monetaria Europea" em uma coletânea de meus ensaios organizada por Luca Meldolesi. Ver Meldolesi, ed., Albert O. Hirschman: "Tre Continenti", Torino, Giulio Einaudi, 1990, págs. 7-18).
A mais importante função de nosso grupo era elaborar um plano que formulasse e desenvolvesse um novo sistema de pagamentos intereuropeus -a European Payments Union (União Européia de Pagamentos), logo conhecida como EPU.
Em um primeiro momento, não me dei conta de que essa atividade acabaria por criar um conflito entre minha nova função como consultor informal da ECA e meu cargo burocrático como membro do conselho do Federal Reserve. O segmento internacional do conselho ao qual eu pertencia foi dirigido inicialmente por Frank Southard -que posteriormente viria a ser o representante dos Estados Unidos no conselho executivo do Fundo Monetário Internacional- e, depois, por Arthur Marget, sendo que ambos eram extremamente críticos em relação às novas funções propostas pela ECA à EPU, consideradas por eles conflitantes com os princípios do FMI e com o próprio papel que dele se esperava. Quando ficaram claras as posições dos vários órgãos americanos participantes da elaboração dos programas econômicos internacionais (os membros do Conselho Consultivo Nacional para Assuntos Monetários e Financeiros Internacionais), meu ponto de vista coincidia então com o da ECA. Tal concepção apoiava incondicionalmente a EPU, mas contava com veemente oposição por parte do Tesouro e, em menor grau, do Federal Reserve. Ao final, a visão da ECA prevaleceu, em grande parte porque o papel desempenhado por Paul Hoffman foi de suma importância: em outubro de 1949 ele havia ido a Paris para proferir extraordinário discurso, no qual insistiu na necessidade de "integração" européia nada menos do que 15 vezes, conforme assinalado enfaticamente por Bissell (Bissell, pág. 63). Como a EPU havia se tornado o símbolo de "integração" da época, ela acabou por convencer indecisos e céticos.
Se hoje nos detivermos nas concepções sobre a União Européia de Pagamentos expressas por Bissell e Marjolin bem depois dos acontecimentos, surpreendemo-nos com o fato de terem permanecido tão favoráveis. Escreve Bissell: "Sob a direção de um conselho executivo, a EPU criou um mecanismo de compensação para pagamentos efetuados com qualquer moeda européia. Com todas as moedas européias passíveis de transferência imediata, as barreiras aos acordos comerciais bilaterais romperam-se... Sempre achei que a EPU era, sob alguns aspectos, a suprema conquista organizacional do Plano Marshall" (Bissell, pág. 64, grifo meu).

No entanto, apenas uma página adiante, Bissell admite que tal medida fora adotada pela ECA "desconsiderando completamente a política americana em curso -que apoiava fortemente o multilateralismo- e, apesar da oposição por parte do Tesouro, que, compreensivelmente, ficou enfurecido (grifo meu)". Esse caso, tão bem descrito por Bissell, ensinou-me muito sobre como decisões são tomadas em Washington, apesar de providências minuciosas para uma "coordenação interagências" e o pretenso apoio que possa suscitar.
Quanto a Marjolin, a admiração que externara pela iniciativa americana (i.e. ECA) de se empenhar pela aceitação da EPU mostra-se ainda mais forte em suas anotações: "Em nenhum outro campo a política americana do pós-guerra manifestou-se com maior brilho. Os Estados Unidos àquela época não só concederam ajuda financeira de porte a seus aliados e antigos inimigos, tornando desse modo possível... a recuperação econômica da região mais desenvolvida fora dos Estados Unidos -a qual se tornaria, como já era de se esperar, um concorrente fortíssimo-, mas também impulsionaram e forçaram os europeus a se unirem, aumentando assim sua força econômica e política. Para ser mais exato, os Estados Unidos empurraram os países europeus para a criação de um sistema de pagamentos que restaurava a conversibilidade recíproca de suas moedas, ao mesmo tempo em que excluía a conversibilidade dessas moedas em dólar. Mais do que isso, os Estados Unidos praticamente forçaram os europeus a liberarem parcela considerável de suas importações de outros países europeus, ao mesmo tempo em que aceitaram que se mantivessem restrições sobre os mesmos produtos, quando provenientes dos Estados Unidos. Essa forma desinteressada de agir, embora aparentemente absurda, traria seus frutos. Durante os anos 50, os pagamentos europeus ao resto do mundo puderam ser efetuados com cada vez menos recursos americanos, até que a conversibilidade geral, incluindo o dólar, pudesse ser reestabelecida em 1958. Progressivamente, as medidas discriminatórias adotadas contra o comércio exterior americano seriam abolidas... O tipo de aposta feita pelos americanos nos últimos dez anos havia portanto sido vitoriosa. Ao longo da história, é raro testemunharmos o êxito de políticas tão incertas e com retorno a tão longo prazo" (Marjolin, págs. 217-18, grifo meu).
A observação de Marjolin foi extremamente cuidadosa ao caracterizar a EPU como uma "aparentemente absurda, mas bem sucedida aposta" que permitiu e incentivou discriminação temporária contra o dólar. Vista por esse ângulo, foi uma forma diferenciada de altruísmo, superior à simples ajuda material, que fora a essência do auxílio de Marshall. Permitiu e incentivou discriminação temporária contra as importações provenientes dos Estados Unidos. Essa exceção à regra de não-discriminação explica também por que os entendimentos fizeram emergir hostilidade tão prolongada por parte de alguns setores de nosso próprio governo, sem mencionar o então recém-criado Fundo Monetário Internacional. Ao terminar esse capítulo, Marjolin aponta para a conexão direta entre o Plano Marshall e a EPU por um lado, e entre o Tratado de Roma e a União Aduaneira Européia, dez anos mais tarde (pág. 220-21).
Hoje, as avaliações positivas sobre a EPU feitas por Bissell e Marjolin reconfortam-me. Mas, àquela época, minha avaliação pessoal tornava-se cada vez mais difícil. Como Bissell observou, os Estados Unidos forçaram a aceitação de um programa que "enfureceu" não somente o Tesouro, mas também seus aliados no governo, como o Federal Reserve, onde eu ainda trabalhava. As posições por mim assumidas faziam-me sentir cada vez menos à vontade. Quando, passado algum tempo, surgiu a oportunidade de sair de Washington, agarrei-me a ela com grande alívio. Recomendado pelo Banco Mundial, decidi mudar-me para Bogotá, Colômbia, na condição de consultor econômico e financeiro do governo local. Mal entendi na ocasião como essa mudança marcaria o início de uma fase completamente nova em minha vida. Apesar disso, algumas das principais idéias presentes em trabalhos que desenvolveria futuramente, como "Passion for the Possible" (Paixão pelo Possível) e "Bias for Hope" (Preferência pela Esperança), podem remontar ao conceito de Marjolin sobre "uma aposta aparentemente absurda, mas bem-sucedida", para ele, a principal característica do Plano Marshall.

Nota:
O texto acima foi preparado para a comemoração do 50º aniversário do discurso do secretário de Estado George Marshall aos formandos de Harvard, a 5 de junho de 1947. Essa comemoração está prevista para este mês no Centro Minda de Gunzburg de Estudos Europeus, na Universidade de Harvard. O texto foi apresentado na Faculdade Woodrow Wilson de Relações Públicas e Internacionais da Universidade de Princeton, a 29 de abril de 1997.

Tradução de Claudia Strauch e Samuel Titan Jr..

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