São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997
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A idéia de plano de imanência

BENTO PRADO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A filosofia é um construtivismo, e o construtivismo tem dois aspectos complementares, que diferem em natureza: criar conceitos e traçar um plano. Os conceitos são como vagas múltiplas que se erguem e que se abaixam, mas o plano de imanência é a vaga única que os enrola e desenrola. O plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam, mas os conceitos são velocidades infinitas de movimentos finitos, que percorrem cada vez somente seus próprios movimentos" ("O Que É a Filosofia?", Ed. 34, pág. 51).

1) O que pretendo fazer, nesta circunstância, é tentar esclarecer o texto em epígrafe, que não deixa de ser enigmático, pelo menos à primeira vista. Como podem idéias como "movimento infinito" e "velocidades infinitas de movimentos finitos", de significação originalmente física, qualificar noções como as de "plano de imanência" e de "conceito", que são claramente "metafísicas"?
Se conseguirmos fazê-lo, mesmo precariamente, talvez alguma luz seja lançada sobre a concepção deleuziana da filosofia nas suas relações com a história da filosofia, com a pré-filosofia e, sobretudo, o que talvez importe mais, com a não-filosofia. Para poder fazê-lo no tempo disponível, vou limitar-me à análise de um texto curto (o capítulo três de "O Que É a Filosofia?") e proceder em duas etapas. Em primeiro lugar, uma descrição do modo pelo qual Deleuze define a idéia de "plano de imanência"; em segundo, um balanço dos efeitos mais significativos dessa concepção da instauração filosófica. Mas, para tanto, será necessário assumir uma perspectiva diferencial e comparativa.
Um ponto de vista externo à obra de Deleuze, que a situe dentro de um triângulo definido por três iniciativas desigualmente próximas da sua: a fenomenologia (pensada, grosso modo, sem cuidar das mil versões que recebeu), a Arqueologia de Foucault e a análise gramatical do segundo Wittgenstein. Se os dois primeiros paralelos parecem obrigatórios e são frequentemente feitos (respectivamente nas formas da contraposição e da aproximação), o terceiro pode parecer arbitrário e desconcertante. Mas é justamente dele que esperamos o maior rendimento nesta empresa comparativa e toda a segunda parte desta exposição ser-lhe-á consagrada.
Mas mergulhemos diretamente em nosso assunto. O melhor fio condutor será, talvez, o que é fornecido pela afirmação de que a filosofia tem um estilo essencialmente construtivista. Creio que Deleuze privilegia, nesta noção, entre os múltiplos sentidos de que está impregnada, aquele que recebeu na filosofia da matemática -em cumplicidade com o intuicionismo, em sua batalha contra o logicismo e o platonismo (pensemos um pouco na tradição francesa, desde Poincaré). Não há conceito em si, ele é o resultado de um trabalho sobre uma matéria. Ou, na fórmula de "Différence et Répétition": "La vérité à tous égards est affaire de production, non de l'adéquation" (pág. 200). É claro que a idéia de construção (se é verdade que tem algo de comum com o uso que dela fazem os filósofos da matemática) recebe um considerável alargamento e retorna, de alguma maneira, à sua base intuitiva comum (da relação entre a planta -o diagrama- de uma casa e os tijolos que lhe darão corpo). Mas é claro, também, que tal idéia reata alguns laços com a idéia, propriamente filosófica, de "constituição", sem esquecer os múltiplos sentidos da palavra "trabalho".
Todas estas instâncias devem ser guardadas, sobretudo porque Deleuze, mesmo se chega a definir o plano como diagrama, ele o definira, previamente, ao mesmo tempo, como horizonte e como solo. Isto é, o plano de imanência é essencialmente um campo onde se produzem, circulam e se entrechocam os conceitos. Ele é sucessivamente definido como uma atmosfera (quase como o englobante de Jaspers, que mais tarde Deleuze vai recusar), como informe e fractal, como horizonte e reservatório, como um meio indivisível ou impartilhável. Todos esses traços do plano de imanência, somados, parecem fazer da filosofia de Deleuze uma "filosofia de campo" -num sentido parecido àquele em que se fala das "psicologias de campo", como a propósito da "Gestaltpsychologie". Mas um campo infinito (ou um horizonte infinito) e virtual.
Mas esse campo -que é o lugar onde se constroem e circulam os conceitos- não é pensável por si mesmo. Sua definição e seu mapeamento só são possíveis pela correlata definição dos conceitos que o povoam. Se os conceitos precisam de um campo virtual prévio, o plano não subsiste sem os conceitos que o habitam e nele erram como as tribos nômades no deserto ou ainda que o marcam como as ilhas que fazem arquipélago no oceano. Mas que a metáfora não nos engane: pode haver deserto inabitado e o oceano nem sempre tem sua superfície interrompida ou salpicada por ilhas. Assim, mais uma vez, se não há conceito sem plano, não há plano sem conceitos que inscrevam, nesse "elemento" fluido e virtual, superfícies e volumes, que o marquem como séries de acontecimentos, que o recubram como ladrilhos inumeráveis e distendam, assim, esse meio impartilhável.
Até aqui não abandonamos completamenente o campo das metáforas. Talvez seja possível lançar alguma luz conceitual sobre tal imagem, através de duas referências externas, a Kant e a Foucault, que corresponderiam, talvez, a duas dimensões essenciais da idéia de plano de imanência. Tudo se passa, com efeito, como se houvesse algum paralelismo entre a "instauração filosófica" segundo Deleuze e a instauração da Ciência na "Crítica da Razão Pura". O plano de imanência é, entre outras coisas, uma espécie de solo intuitivo, cujos "movimentos infinitos" são fixados pelas "coordenadas" construídas pelo movimento finito do conceito. O plano de imanência, despovoado de conceito, é cego (no limite é puro Caos); o conceito, extraído de seu "elemento" intuitivo (no sentido de atmosfera) é vazio. Acrescentaria, ainda, que, assim como Kant atribui à imaginação transcendental a função de mediação, que permite a subsunção da intuição ao conceito, Deleuze introduz a instância intermédia dos "personagens conceituais", na passagem dos "traços diagramáticos" do plano às "coordenadas intensivas" do conceito.
Mas essa aproximação pode levar a equívoco. Se num caso procura-se fundar o conhecimento científico -matemática e física- na determinação conceitual da matéria da intuição no campo da experiência possível, no outro caso o que se busca é descrever a instauração da filosofia (ou das filosofias) no campo da experiência real: o fato das filosofias, Platão, Descartes, Kant... E, sobretudo, não é do Conhecimento que se trata, mas do Pensamento -a pergunta: o que é a Filosofia? é idêntica às perguntas: que significa pensar? que é orientar-se no pensamento?
O fato é que a exploração da idéia de plano de imanência não nos leva para o campo da Epistemologia ou da Teoria do Conhecimento, mas para aquele das relações da Filosofia com sua história, com a pré-filosofia e com a não-filosofia -relações que, como veremos, se entrelaçam num único nó ou feixe. Aqui torna-se necessário corrigir nossa perspectiva, por uma dupla referência à tradição da Fenomenologia e à Arqueologia de Foucault (em particular a "As Palavras e as Coisas").
A Fenomenologia não cuidou sempre do "solo" do pensamento? Esse solo não acaba sendo definido como a esfera do pré-predicativo a que devem ser remetidos, em última instância, todos os constructos conceituais? Essa esfera não é ela a "Terra que não se move" (lembremos que a Terra é figura fundamental no pensamento de Deleuze), isto é, a Terra como elemento da imanência do "Lebenswelt", "Urdoxa"?
Assim como a determinação da essência remete ao campo do pré-predicativo, a construção do conceito remete ao campo pré-filosófico do plano de imanência. Mas essa aproximação de superfície esconde uma mais funda divergência. Vislumbrando, obscuramente embora, o plano de imanência, a Fenomenologia perdeu-o de vista desde o início, fazendo dele um campo ego-centrado (1) e introduzindo em seu próprio coração o transcendente na forma da Comunicação ou da Intersubjetividade. No coração mesmo do plano de imanência, o Universal da Comunicação abre uma brecha por onde a imanência se esvai numa hemorragia incontrolável, vertendo no transcendente, do qual o plano se torna mero predicado -reiterando o processo de confisco ou sequestro operado no passado pelos Universais da Contemplação (Platão) e da Reflexão (Kant).
Diferente é o caso do paralelo com o Foucault de "Les Mots et les Choses". Ali a "epistéme" é também uma espécie de chão pré-teórico e pré-filosófico, que subjaz e prefigura (nos seus "diagramas implícitos") a forma do saber que só pode ser compreendido a partir desse campo prévio. Mais do que isso, a arqueologia não tem vocação epistemológica -mesmo porque a suspensão do valor de verdade do discurso faz parte integrante de seu método. Mais ainda, como não se confunde com a "Urdoxa" de Husserl, esse "socle" não pode confundir-se também com forma alguma de "doxa", nem para Foucault, nem para Deleuze, que se demarcam igualmente do estilo tradicional da história das idéias.
Essa espécie de "impensado" de base não é o "fato" de uma "ideologia", de uma "forma mentis" ou de uma mentalidade -mesmo se estamos mergulhados na facticidade da história (do pensamento dado) a investigação é sempre guiada pela questão "quid juris". Na forma de uma nova pergunta: por que já não mais posso pensar assim? Que posso pensar, agora, à luz do futuro? Como se destaca hoje o pensável, no seu extremo limite, lá onde ele toca o impensável?
Seria, assim, o plano de imanência um novo avatar da "epistéme" foucauldiana? Vários textos parecem levar nessa direção, sobretudo quando se aponta para o fato de que "várias filosofias podem partilhar o mesmo plano de imanência". Mas tais convergências na estratégia não devem nos cegar para diferenças importantes: em momento algum, da descrição deleuziana da "Instauratio Philosophica", há suspensão do valor de verdade e o estilo de sua história "filosofante" da filosofia jamais atinge a perspectiva quase "etnográfica" de "Les Mots et les Choses".
Mais próximo talvez da história heideggeriana da metafísica do que Foucault -em cuja obra também encontramos ecos heideggerianos- Deleuze, sem insistir no topos do esquecimento do Ser, não deixa de falar em desvio ou em deformação do plano de imanência. A confusão entre o Ser e o ente não tem ela algo de semelhante à confusão entre o plano de imanência e os Universais que o reconduzem à Transcendência? A nova filosofia da Diferença não estaria fundada no pensamento da diferença, próxima parente da "diferença ontológica"? É, pelo menos, minha impressão, que talvez pudesse ser verificada na comparação dos usos diferentes que os três filósofos fazem da obra de Nietzsche.
É aliás essa "pequena" diferença em relação a Foucault que levanta, para Deleuze, uma dificuldade que o primeiro não só ignora, como parece não dever, nem precisar enfrentar. Eu cito Deleuze: "Mas, se é verdade que o plano de imanência é sempre único, sendo ele mesmo variação pura, tanto mais necessário será explicar por que há planos de imanência variados, distintos, que se sucedem ou rivalizam na história, precisamente segundo os movimentos infinitos retidos, selecionados. O plano não é, certamente, o mesmo nos gregos, no século 17, hoje (e ainda estes termos são vagos e gerais): não é nem a mesma imagem do pensamento, nem a mesma matéria do Ser. O plano é pois o objeto de uma especificação infinita, que faz com que ele não pareça ser o Uno-Todo senão em cada caso especificado pela seleção do movimento. Esta dificuldade concernente à natureza última do plano de imanência só pode ser resolvida progressivamente" ("O Que É...?", pág. 55).
Note-se que a semelhança das iniciativas (e mesmo a cumplicidade entre os autores) não pode esconder aqui uma discrepância radical. O que faz problema para Deleuze é ponto pacífico para Foucault, ou o ponto de partida de seu trabalho (sempre limitando-nos, aqui, a "As Palavras e as Coisas"). Talvez esse nó -se ele não for imaginário- possa ser desatado se atentarmos para a diferença na maneira como cada um tenta responder à questão -o que é pensar?, embora ambos articulem tal questão à reflexão sobre o que é "radicalmente impensável".
É essa impaciência nietzscheana e vertiginosa do pensamento que faz talvez o traço mais central do pensamento de Deleuze, essa vontade de mergulhar, através das mil folhas dos planos de imanência (essa dimensão pré-filosófica que no entanto só vem ao ser com a instauração da filosofia) em direção ao Caos que recortam e filtram, para aí coincidir com o pensamento e seu limite ou seu "fora absoluto". Sublinhemos que, a despeito do combate antidialético de Deleuze, Hegel já dizia que, para tornar-se Razão, o simples Entendimento devia "mergulhar no delírio dionisíaco da Substância". Um percurso, para abreviar, que leva a filosofia de sua sedução pelo "impensado" em direção da fascinação pelo "impensável". Ou, nas palavras de Deleuze: "O plano de imanência é ao mesmo tempo o que deve ser pensado, e o que não pode ser pensado. Ele seria o não-pensado no pensamento. É a base de todos os planos, imanente a cada plano pensável que não chega a pensá-lo. É o mais íntimo do pensamento e todavia o fora absoluto" ("O Que É...?", pág. 78).
Com estas observações, demos o primeiro passo da tarefa a que nos propusemos, e que está longe de dar conta do sentido ou do uso da idéia de plano de imanência no pensamento de Deleuze. Outro passo é necessário, para que haja algum progresso -por mínimo que seja-, e concerne às relações entre as idéias de plano de imanência e de Caos.

Continua à pág. 5-7

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