São Paulo, sexta-feira, 13 de junho de 1997
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Artista se move na fronteira da arte

SUELY ROLNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

A obra de Lygia Clark que estará sendo "experimentada" na Documenta tem o nome de "Objetos Relacionais".
São saquinhos de plástico ou pano (com ar, água, areia ou isopor), tubos de borracha, canos de papelão, colchões de plástico transparente com bolinhas de isopor, meias, panos, pedras, conchas.
Lygia aplicava regularmente esses e outros objetos sobre o corpo de um misto de espectador e paciente, entre 1976 e 1981. Essa foi sua última obra.
É, desde sua criação, que os "Objetos Relacionais" me atraem e convocam um esforço de problematização. A primeira tentativa de apreendê-los se deu numa tese que defendi na década de 70, em Paris, a pedido da própria Lygia ("La Mémoire du Corps"). Pensei que ela esperava obter era um certo sentido de sua obra em termos clínicos, já que a obra não encontrava ressonância alguma no campo da arte, nem era levada a sério pelos psicanalistas.
Parti do pressuposto de que os "Objetos Relacionais" inseriam-se no âmbito de um trabalho terapêutico e, sem problematizar essa idéia, desenvolvi uma leitura basicamente psicanalítica.
Só me aproximei mais intimamente da obra de Lygia em 1994, por ocasião de uma curadoria de sua retrospectiva na 22ª Bienal Internacional de São Paulo, que acabou não acontecendo. Impôs-se então uma perspectiva de análise inteiramente diferente.
Parti dos "Objetos Relacionais" para pensar o conjunto da obra de Lygia. Esta "démarche" me levou a supor que a artista havia perseguido uma mesma questão desde o início, a qual foi se depurando ao longo de sua obra e acabou a colocando numa posição fronteiriça entre a arte e a clínica.
Com os "Objetos Relacionais", a obra de Lygia não havia migrado da arte para a clínica, mas passara a habitar a tensão de suas bordas -ela criara um híbrido radicalmente experimental.
Nos textos que apresentarei nas conferências em Kassel, parto de uma experiência que vivi com a "Baba Antropofágica" (1973) para circunscrever o que, a meu ver, seria a questão de Lygia: promover através de seus objetos uma espécie de ritual de iniciação da subjetividade do espectador.
O objetivo das sessões era mobilizar aquilo que a artista chamou de "estado de arte" -ambiente das sensações dos rumores do mundo no corpo, que formam composições variadas ao longo da existência e estão sempre forçando a subjetividade a reconfigurar-se.
É a partir deste estado que se criam as chamadas obras de arte, mas também formas de realidade, modos de vida, Eus inéditos.
Precisamente neste ponto, a obra de Lygia se situaria no âmago das questões que se colocam para a subjetividade no contemporâneo: a necessidade cada vez mais premente de adquirir habilidade para operar com a variedade de universos com os quais convivemos.
A complexa polifonia de rumores de tais universos em nosso corpo se traduz na subjetividade por uma profusão dinâmica de sensações que não consegue expressar-se através de uma forma única e estável na qual ela habituou-se a se reconhecer e ser reconhecida.
A forma se desestabiliza constantemente, perde sentido e, no entanto, as subjetividades tendem a insistir no mesmo contorno, vivido e entendido como essência (a tão evocada identidade).
O regime identitário mantém-se como princípio dominante nos processos de organização da subjetividade, apesar de que basear a consistência subjetiva na ilusória unidade de um Eu soberano não funcione para mover-se no contemporâneo.
A urgente mudança desse princípio implica justamente a abertura da subjetividade para o estado de arte. Com essa abertura, a subjetividade deixa de basear sua consistência numa forma substancializada, para conquistá-la por meio das sensações que a habitam a cada momento, gênese de suas singulares e efêmeras figuras.
É para tal transição que Lygia cria condições com sua obra, quando esta passa a depender da participação do espectador. A proposta vai se radicalizando, sobretudo a partir de "Caminhando" (1964), e chega à sua mais depurada solução formal com os "Objetos Relacionais".
Com esses poderosos objetos, Lygia instala seu "híbrido cliente" no plano das sensações e o lança para o estado de arte. Aconchegado no mistério deste consultório experimental, ele faz a experiência do naufrágio de sua atual figura, experiência que é ao mesmo tempo da germinação de outras imprevisíveis figuras, as quais o estado de arte lhe permite pressentir.
Lygia quis e conseguiu reduzir o objeto de arte ao mínimo essencial, o quase-nada da forma que promove esse efeito. Vista desta perspectiva, a obra de Lygia ganha a dimensão de uma "fórmula" para se viver o contemporâneo.

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