São Paulo, sábado, 14 de junho de 1997
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A sombra da paixão

OLGÁRIA FÉRES MATOS

a proceder de uma genealogia da razão iluminista, Crochik reflete acerca de um fenômeno sem precedentes no passado: o totalitarismo e o advento da sociedade de massa. Diferenciando-se da tirania, do despotismo e do autoritarismo, o totalitarismo corresponde a uma verdadeira mutação do imaginário social com respeito à idéia de razão. Genealogia: reflexão acerca da origem e do valor da razão. Em sentido próprio, de "logos", e na transformação pela qual passou, quando se traduziu na "ratio" latina, a razão sempre esteve relacionada com o sujeito, com sua capacidade de pensar. Se a atitude espontânea com respeito ao racional é não-interrogativa, ela não é menos tácita com respeito à idéia de que coisas racionais são aquelas úteis. Considerada com precisão maior, a razão é "a força que torna possíveis ações racionais, é a faculdade de classificação, inferência e dedução, não importando qual o conteúdo específico dessas ações: ou seja, o funcionamento abstrato do mecanismo do pensamento" (Horkheimer, "Eclipse da Razão").
Horkheimer reconhece uma crise da cultura nessa tendência moderna a tudo decidir segundo a idéia de eficácia imediata. Razão passa a confundir-se com racionalidade científica, e esta com progresso. Cultura que sinonimiza pensamento com pensamento científico é, também, a da sociedade de massa.
Voltando-se para a questão da cultura midiática (a da "educação média ou semiformação"), Crochik reúne, por um lado, psicanálise e análises dos tipos psicológicos que podem desenvolver condutas totalitárias -como o manipulador, o dogmático, o rígido-, de outro, as perspectivas culturais que produzem e reforçam preconceitos. Na massa dissolve-se o indivíduo autônomo e consciente de seus fins. Indivíduos que procuram um partido, um líder, uma teoria que lhes sirvam de guia, abdicam da reflexão. É assim que "Preconceito: Indivíduo e Cultura" retoma a questão frankfurtiana central: saber por que, no apogeu do desenvolvimento científico e tecnológico, a humanidade, em vez de entrar num mundo propriamente humano, recai em novas formas de barbárie. Fanatismos e guerras não constituem desastres de ordem da natureza, resultam da ação humana. O nazismo, como figura do mal radical, questiona o otimismo científico ao fazê-lo coincidir com as regressões da sociedade. Auschwitz -emblema do mundo totalmente administrado- não foi um "acidente de percurso" do mundo culto europeu. Lá desapareciam não somente indivíduos mas, sobretudo, o que era inassimilável ao totalitarismo: a dignidade humana.
Este livro procura compreender o que torna possível a exclusão, a perseguição, o preconceito. Encontra principalmente em Horkheimer e Adorno as razões da convergência entre Hollywood e os EUA do "New Deal", a massificação da sociedade nazista e a padronização da indústria cultural. O iluminismo, ao contrário, valia-se do pensamento, apto este a regulamentar as relações entre os homens, suas crenças e seu conhecimento da natureza humana e extra-humana: "se o iluminismo determina ao homem ser dono de seu destino", observa Crochik, "o indivíduo predisposto ao preconceito renuncia a essa determinação".
A massa homogênea que adere ao nazismo é da mesma natureza daquela constituída pela cultura, mesmo que a cultura veiculada pela "indústria cultural" ofereça uma imagem em aparência mais benigna que a do totalitarismo. No entanto, sua matriz comum, indica Crochik, é a ancoragem na cultura do ressentimento, cuja dramaticidade Nietzsche já apontara: passividade e projeção de um ódio por si num outro ameaçador significam: "consciência sonolenta", de autonegação: "o preconceito não é só uma paixão, é também a frieza e a apatia. Nele esses extremos se encontram. Assim é que, se, no caso da paixão, o objeto é anulado, na apatia o sujeito se anula (...) A apatia é a sombra da paixão". O "homem sem qualidades" é estereotipado e sua prática é a do "bode expiatório". O preconceituoso racista ou fanático religioso funde representações verdadeiras acerca de si, atribuindo-as falsamente aos outros. O antisemita inveja secretamente o judeu por qualidades que lhe confere e não suporta a frustração de não tê-las. Pratica, por assim dizer, a identificação com um opressor imaginário para tornar-se, ele mesmo, "justificadamente" agora, o próprio opressor. Circunstância tratada por Adorno e Horkheiemer, como mostra este livro, no conceito de mímesis e de falsa mímesis. A primeira é inteligência psicossomática, em que os seres da natureza com ela se confundem para sobreviver. A falsa mímesis, ao contrário, adapta-se, através da tecnologia e da maquinaria social, a algo tomado como inanimado -de modo que este não se constitua como ameaçador. Quanto mais fraco o ego, mais forte é sua ancoragem ao idêntico. De imitação lúdica e comunicativa com o desconhecido, a mímesis transforma-se em projeção fóbica e distribuidora.
Interrogando a racionalidade que produz o irracional, o presente trabalho indica elementos presentes na formação cultural que conduzem ao rancor pelo conhecimento -a pseudoformação na qual a cultura desempenha função decorativa. O mundo da violência é sempre antiintelectual e despreza aquilo que desconhece e cujo conhecimento desestabilizaria hábitos mentais. Cultura cientificizada e educação midiática "média" convergem. Sua racionalidade se constrói a partir de um ponto de indiferença entre os momentos psicológico e lógico do conhecimento que se quer abstrato, universalizável, tal como a mídia procura ser imediatamente inteligível por todos.
A reflexão, ao contrário, caucionava indivíduos autônomos -o que, kantianamente, aliava-se ao "eu que acompanha todas as representações do sujeito" durante toda sua vida. Se, hoje, o homem desconsidera a "faculdade de julgar", isto se deve à mecanização crescente do trabalho que não necessita de um grau elevado de educação. Requer somente adaptação à máquina, mecânica ou eletrônica. A cultura humanista, diversamente, procurava formar o homem com dignidade, o que se torna supérfluo quando o indivíduo-cidadão -que se pautava pelo direito e pela Lei- passa a ser sobredeterminado por uma única dimensão: a de consumidor. Nestas condições advém uma nova concepção da democracia e da sociedade: a sociologia torna-se saber "sem sociedade" e a democracia o é "sem democratas". O pensamento abstrato e unidimensional não questiona premissas, acredita na determinação única do presente.
Abstração, princípio de identidade fixa, espírito classificatório protocolar significam: comandava-se, burocraticamente, o extermínio em massa a partir de despachos de escritório. A "hybris" da racionalidade científica, do mercado e da política confere à sociedade seu caráter niilista. A neutralidade da ciência e a lei do equivalente no mercado só reconhecem o poder como princípio de todas as relações, rompendo com toda tradição que encontrava na "philia" os laços da sociabilidade: "não pode haver amizade", escreveu La Boétie no século 16, "onde há crueldade, deslealdade e injustiça. Entre os maus, quando se reúnem, é um complô, não é companhia. Eles não se entretêm, mas entretemem-se. Não são amigos, mas cúmplices". Isolamento e solidão constituem as tendências marcantes da modernidade e do preconceito que afastam os homens. Também Horkheimer observou: "os estudantes fugidos do Leste, nos primeiros meses depois de sua chegada (à Alemanha Ocidental) são felizes porque há mais liberdade, mas ao final tornam-se melancólicos porque não existe amizade alguma". Tema este reconhecido como essencial por José Leon Crochik para tratar das diversas formas do preconceito. Pois, anota o autor, o mundo que o preserva, desenvolve e fortalece ativamente é aquele no qual "desaparece o calor que envolve a verdadeira amizade".

Olgária Chain Féres Matos é professora do departamento de filosofia da USP.

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