São Paulo, sábado, 14 de junho de 1997
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Antropologia da ciência

JESUS DE PAULA ASSIS

a idéia de antropologia de campo está comumente ligada ao estudo de sociedades ditas "mais primitivas" ou de grupos, dentro de sociedades avançadas, ditos "mais homogêneos" ou "mais circunscritos". O antropólogo, um tanto arrogantemente, arma-se de teorias e de disposição para enfrentar os tais nativos e sai recolhendo suas impressões.
No fundo, não difere muito de um trabalho jornalístico. Além da reportagem, o antropólogo deve produzir um texto que ligue o relato a alguma teoria. Pouco importa se a teoria está sub judice, como estão todas as teorias que norteiam pesquisas em ciências humanas, o campo por definição da eterna "crise de paradigmas". O que interessa é que o antropólogo construa um relato o mais próximo possível do esquema: descrição isenta + teoria fundamentadora.
A coisa muda um pouco de figura quando os "nativos" são membros da sociedade por definição "avançada" e, pior ainda, se são os membros mais avançados dessa sociedade: os cientistas. Se existe ou não uma filtragem intelectual para a carreira científica, isto é, se seria verdade que uma parcela significativa dos membros mais inteligentes de uma sociedade tende para essa profissão, pouco importa. O fato é que a ciência é um rótulo altamente prezado nas sociedades avançadas, mesmo que, como qualquer pesquisa de opinião comprova facilmente, a maioria das pessoas tenha muita dificuldade para identificar o trabalho científico e a profissão acadêmica, separando-a de outras eminentemente técnicas, como a engenharia, por exemplo.
Colocado o quadro, vê-se que não era simples a tarefa à qual Bruno Latour e o co-autor Steve Woolgar debruçaram-se 20 anos atrás. Pesquisador em início de carreira, munido de um conhecimento mínimo da língua inglesa, sem qualquer formação na área de biologia, Latour foi para a Califórnia ser antropólogo residente de um laboratório de bioquímica e fisiologia do qual sairia em breve um Prêmio Nobel. Sua tarefa era, como um antropólogo clássico, investigar os hábitos dos nativos e, sem se apoiar no conteúdo desses costumes -e sem usar as explicações que os próprios nativos dão acerca de suas ações, pois elas traduzem muito mais preconceito que fundamentação-, tentar uma descrição das atividades que se desenrolavam diante de seus olhos.
Bem ao gosto dos anos 70, Latour emerge com uma descrição da atividade científica que condiciona o conteúdo aparentemente isento dos enunciados de observação a condições sociais e etnometodológicas dos envolvidos nas pesquisas. Isto é, enunciados aparentemente livres de qualquer vestígio retórico -por exemplo, "o hormônio X é produzido na glândula Y"- são, na verdade, resultado de contínuas negociações entre cientistas e grupos de cientistas, resultado de controvérsias que, depois de resolvidas pelo convencimento, são descritas como resolvidas pela razão apenas.
Latour não é adepto do chamado "programa forte" em sociologia da ciência, que afirma que todo conteúdo dos enunciados científicos é inteiramente condicionado pelas regras de convivência da sociedade acadêmica e das relações desta com a sociedade em geral. Ele vê condicionantes sociais atuando sobre enunciados científicos, mas se abstém de dizer que tais enunciados não poderiam ser justificados de outra forma que não fosse exclusivamente sua origem social. Essa tensão não inteiramente resolvida ocuparia outro livro do autor, "Science in Action", ainda não traduzido no Brasil.
"A Vida de Laboratório" é o resultado de dois anos de pesquisa nesse laboratório norte-americano, no qual se pesquisou, isolou e reproduziu o TRF(H), o fator (hormônio) de liberação da tirotropina. Ao chegar ao laboratório, Latour, o antropólogo recém-chegado entre os nativos, chamava a atenção. Afinal, ao lado dos técnicos, estudantes e pesquisadores seniores, perfeitamente integrados à dinâmica de um laboratório de pesquisa científica, estava aquele estrangeiro, fazendo algumas perguntas, tentando não interferir, mas interferindo no cotidiano de todos. Depois de algumas semanas, sua presença (mas não certamente seu trabalho) já havia sido absorvida por todos. O antropólogo residente era apenas um pesquisador a mais, alocado nas dependências do laboratório.
Sem perguntar a ninguém, diretamente, o que fazia (ou o que achava que fazia) no laboratório, Latour foi anotando movimentos, gravando diálogos, assistindo a seminários (o equivalente, na vida de laboratório, ao que seriam cerimônias esotéricas em sociedades primitivas), tirando fotos, recolhendo papéis amassados, tentando racionalizar as marcas nos quadros-negros etc. Depois de algum tempo, formulou o modelo segundo o qual a vida no laboratório gira em torno de criar enunciados, afastá-los o máximo de suas condições de criação e, depois, tentar convencer outras pessoas (não diretamente envolvidas na formulação dos tais enunciados) de que eles são mais que apenas impressões individuais, ou seja, que refletiriam alguma coisa de uma fugidia e indefinível "realidade". Dito de outra forma, todo enunciado começa com algo como "o pesquisador fulano de tal obteve tais e tais medidas em dadas condições" e termina, quando chega a ser incorporado na literatura científica estável, com "existe uma substância X, que tem tal efeito sobre os sistemas Y, fornecendo as medidas Z".
A imagem que emerge desse estudo está longe daquela que a comunidade acadêmica divulga e abona: atividade científica é algo totalmente diferente de outras atividades humanas, já que todas suas pendências se resolvem com apelo exclusivo à razão, à argumentação que não deixa equívocos e o resultado final é sempre conhecimento sobre o mundo. O estudo antropológico revela, por outro lado, que os enunciados sobre o mundo resultam de um intenso processo de negociação entre cientistas durante o qual são subtraídas modalidades ("X pensa que...", "X acredita ter medido...", "X considera provável que...") dos enunciados iniciais, transformando-os em enunciados sobre o mundo, dotados de uma suposta objetividade impessoal.
Essa imagem, tirando algum jargão que Latour emprega, não difere muito do que se fez em filosofia e sociologia da ciência nos últimos 40 anos. Assim, os achados do autor não chegam a surpreender. O que resta resolver é o problema de método.
Primeiro, é evidentemente falso o distanciamento entre o antropólogo e os nativos. Latour não é um europeu metido no interior do Congo, tentando analisar costumes inteiramente desconhecidos. Ele é um europeu -portanto imerso em uma cultura que tem a ciência em alta conta- estudando cientistas. Por mais que não soubesse exatamente o que aquele grupo de bioquímicos fazia, o fato é que sabia que exerciam uma atividade consagrada, definida e cujo propósito explícito nunca lhe fora estranho. Assim, como se distanciar do objeto de estudo, problema central da antropologia de campo? No limite, poder-se-ia sugerir que uma antropologia de sociedades modernas, avançadas, seria mesmo impossível. Este é o tema de outro livro de Latour, "Jamais Fomos Modernos" (Editora 34), no qual ele defende mais do que a possibilidade, a necessidade extrema dessa antropologia.
Segundo, o estudo feito por ele é, no fim de contas, um estudo científico, para ser publicado na forma de livros e artigos de revistas, para ser usado como moeda de troca na mesma comunidade acadêmica que estava sendo estudada. Isso levaria a uma regressão: seria preciso um estudo antropológico dos antropólogos de cientistas e assim por diante, ao infinito. Latour não se furta a essa idéia. Admite, afinal, que tudo o que o antropólogo pode pretender é a plausibilidade, não a verdade. Se nem a biologia (objeto de sua pesquisa) poderia representar algo sobre o mundo, mas apenas transformar modalidades de enunciados, por que teria a antropologia (em especial, essa antropologia de sociedades avançadas) algum estatuto especial? Não tem.
Enfim, "A Vida de Laboratório" é um livro importante dentro dos estudos recentes em sociologia da ciência, tanto por suas revelações de fato (que não são, na verdade, muitas nem muito surpreendentes) como pelos problemas metodológicos que levanta. Não obstante alguns defeitos de tradução e a ausência de um índice remissivo, é um livro a ser incorporado nos currículos universitários de graduação. Agora é esperar que "Science in Action" seja finalmente traduzido.

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