São Paulo, sábado, 14 de junho de 1997
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Otimismo jeca-tatu

EUGÊNIO BUCCI

o brasileiro é feliz. Estava lá a notícia numa das edições dominicais de maio da Folha. Não notícia científica, mas uma notícia empírica, ainda bem: resultado de mais uma pesquisa do Datafolha, dessa vez atestando que 65% dos brasileiros se consideram felizes. Na mesma edição, vinham artigos analisando o fato, e muitas hipóteses foram apresentadas ao público. Mas, entre tantas idéias, que tantas referências buscaram em autores tão diversos, talvez tenha faltado considerar um pouco uma possibilidade não menos interessante: ser feliz é um estado que corresponde a uma expectativa ancestral da gente brasileira sobre si mesma, é quase uma afirmação da brasilidade.
Felicidade, entretanto, não é o tema de Carlos Fico em "Reinventando o Otimismo". Seu tema, suficientemente claro desde o título, é o otimismo brasileiro e sua reconstrução na propaganda oficial durante os anos da ditadura militar no Brasil. Ainda assim, a tese de que a propaganda do regime autoritário lançou raízes num imaginário secular deste "país-continente" ilumina o sinal de igual (ou quase) que existe entre ser brasileiro e ser contente da vida, ao menos na intimidade (o brasileiro seria alguém satisfeito entre quatro paredes, embora às vezes contrariado na esfera pública). Disso resulta muito forte a cumplicidade entre a felicidade declarada e uma perspectiva otimista diante da vida. Não por acaso, o próprio otimismo seria uma característica brasileira. A propósito, na pesquisa do Datafolha o amor pelo Brasil salta como um dos ingredientes da felicidade (o país é apontado por 43% dos entrevistados como o mais feliz do mundo).
"Reinventando o Otimismo" oferece um apanhado oportuno e necessário da gênese desse tipo de mentalidade nacional. A começar pelo amor. Como a felicidade brasileira costuma ter parte confessa com a intimidade, com o amor (o que aliás se viu na pesquisa), é legítimo começar por ele. O amor pátrio que seria melhor que os outros e, sendo melhor, faria de nós todos, nessa matéria particular, seres mais saciados que os de outras terras. Lembremos Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), que levou a "modinha" brasileira a Portugal: "Cuidei que o gosto do amor / sempre o mesmo gosto fosse / mas um amor brasileiro / eu não sei por que é mais doce". Depois, deixando um pouco o amor de lado, passemos ao conde Affonso Celso (1860-1938), autor do célebre "Por que me Ufano de meu Paiz", que formulou a exaltação do território imenso, dos encantos da natureza, o clima ameno, a ausência das calamidades, a harmonia racial, enfim, nas palavras de Carlos Fico, "o sumário clássico do otimismo". Em seguida teríamos Oswald de Andrade: "O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça". Ou seja, a celebração apoteótica do congraçamento interétnico. Está aí não apenas o cadinho de raças, mas a cultura acumulada do "fabuloso mundo tropical", do "fulgurante ambiente brasileiro", de que falou Graça Aranha. Temos então uma mistura daquelas, heterodoxa e antropofágica, dentro da qual dizer-se infeliz chega a ser uma heresia, uma recusa da nacionalidade.
É verdade que podemos encontrar uma síntese acabada desse universo no deboche do grupo Premeditando o Breque: "Aqui não tem terremoto / aqui não tem revolução / é um país abençoado / onde todo mundo mete a mão". Mas o livro nos põe em contato com um inventário mais útil, sobretudo agora que o Brasil voltou à moda, quando o culto à brasilidade ressuscita em roupagens mais exóticas -que mesclam globalização, privatismo e Carlinhos Brown, um nacionalismo festivo que se confunde com a confecção de grifes culturais para justificar o véu politicamente correto da era globalitária.
Mesmo os que têm certa dificuldade com o que venha a ser a chamada "história das mentalidades", por onde caminha boa parte do texto de Carlos Fico, mesmo esses encontram informações inéditas e sugestões originais de interpretação. Entre as informações, ressaltem-se as entrevistas realizadas pelo autor com Octávio Pereira da Costa e José Maria de Toledo Camargo, militares responsáveis pela propaganda da ditadura a partir de Costa e Silva. Quanto às sugestões originais de interpretação, temos a hipótese de uma eficácia maior do que a comumente atribuída à propaganda da ditadura. Segundo o autor, os tópicos clássicos do otimismo brasileiro teriam passado por uma re-significação a partir do golpe militar de 1964. Mais propriamente a partir de Medici, pois Castello Branco tinha "ojeriza" à propaganda.
O tema de Carlos Fico, de modo mais demarcado, são as ações da Aerp (Assessoria Especial de Relações Públicas), de 1968 a 1973, e da Arp (Assessoria de Relações Públicas), de 1974 até 1978. A primeira, sob direção de Octávio Costa e a segunda, de Toledo Camargo. O eufemismo "relações públicas" para designar propaganda não passa sem ser observado pelo autor: era um dos traços da própria personalidade da ditadura, que dissimulava sua própria natureza, uma espécie de ditadura "sem nenhum caráter".
Os mentores da "comunicação" do governo não se viam como executores de uma tentativa de lavagem cerebral em massa, sequer admitiam estar fazendo campanhas para angariar apoio ao regime (ainda que tivessem noção exata da falta de legitimidade contra a qual tinham de atuar), mas acreditavam estar prestando um esclarecimento não-partidário, não-ideológico, mas apenas verdadeiro, para o povo. Estavam convencidos de sua finalidade cívica e de sua função de utilidade pública. É assim que, no meio de um programa de comunicação destinado a elevar o moral da Pátria, tendo como carro-chefe o bordão "este é um país que vai pra frente", cabiam campanhas como a do Sujismundo, ensinando noções de higiene e limpeza da cidade, e a do Dr. Prevenildo, para evitar acidentes de trabalho. Tudo pela restauração da alma nacional, tudo pela sua "re-significação" disciplinadora.
Traços assim revelam uma pretensão redentora um tanto esdrúxula dentro de um regime que era usurpador por definição. Tratava-se de uma ingenuidade simplória, caipira, precária demais, que inspiraria pena se a ditadura não tivesse obtido resultados tão trágicos. É mesmo engraçado dar-se conta de que o regime militar, que foi truculento e corrupto em muitos aspectos, surge das páginas do livro de Carlos Fico no traje, genuinamente nacional, mas um tanto embaraçoso, de Jeca Tatu.
Aqui podemos nos afastar brevemente do itinerário de "Reinventando o Otimismo" para assinalar que a ingenuidade "jacu" de setores da tirania é acusada na pretensão dos mentores da propaganda oficial e no alegado "uso" que faziam da televisão. A verdade é outra, porém. Eles não "usavam" a TV. Ao menos não a usavam mais do que por ela eram absorvidos. A integração do território nacional, intento do regime alcançado durante sua vigência, não se deveu a estratégias dos departamentos de propaganda, mas veio de outras áreas do regime. A explosão da TV como veículo do autoritarismo foi mais um subproduto da doutrina de segurança nacional e menos um mérito das mensagens arquitetadas pelos cérebros da Aerp ou da Arp -a estes restou embarcar na onda do veículo que se desenvolveu a despeito deles e fora de seu controle.
Embora o livro não se dedique a registrar os movimentos de servidão voluntária das emissoras de TV, não custa também lembrar que a Globo, por si mesma, cuidou de difundir "jingles" pacificadores (na linha "este ano quero paz no meu coração"). Acima de tudo, foi seu jornalismo que constituiu o elo mais decisivo para a integração nacional à luz das realizações da ditadura. Além disso, programas como "Amaral Netto, o Repórter"(contra o qual, aliás, surpreendentemente, Octávio Costa declarava lutar "como um leão") tinham como única missão exaltar os militares. Dentro da TV que se consolidava no Brasil, a propaganda do regime servia mais para estabelecer parâmetros do tipo de comunicação que o governo gostava e assim "enquadrar" o formato, sobretudo da publicidade comercial da época (o que Carlos Fico bem demonstra), do que para exercer hegemonia. É fato que o governo chegou a ser o maior produtor de filmes durante o período, mas na verdade foi sempre caudatário de um processo mais amplo de transformação das comunicações. Mas isso já é outra conversa.
O que mais nos importa, aqui, é que depois do livro de Carlos Fico não podem mais restar dúvidas. A Aerp e a Arp, de modo consciente e deliberado, e nada amadorístico, tentaram associar a ditadura ao otimismo recorrente que de tempos em tempos varre o Brasil. E tentaram direcionar o otimismo reinventado para o trabalho e para a obediência cívica, sempre por meio de associações de imagens (míticas) simples e diretas. Mais do que tentar, eles souberam aproveitar bons momentos, como as cenas de gols de Jairzinho e de Tostão na Copa de 70. Em muitas campanhas foram bem sucedidos. Encontraram um diálogo nada desprezível com essa gente que, não se sabe bem como, consegue extrair sua alegria lá do fundo de suas misérias.
Naquele tempo, como antes e depois, o brasileiro era feliz. Naquele tempo, como antes e depois, os soberanos de plantão já sabiam disso.

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