São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997
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A ruga primordial

Escultura de José Resende na USP desafia a engenharia

SERGIO ROMAGNOLO
ESPECIAL PARA FOLHA

Em sua escultura localizada no campus da Universidade de São Paulo, em frente ao prédio da Escola Politécnica, José Resende construiu a sua "ruga" mais recente. É uma chapa de 1,5 m por 15 m, de aço "cortem", sem título, executada em homenagem ao centenário da Escola Politécnica.
A chapa se levanta, inicialmente, puxada por cabos de aço a 15 m de distância, presos ao chão. Os cabos seguram a chapa na sua parte intermediária e erguem-na para trás e para o alto, mas, contraditoriamente, estão ligados ao solo. Existe aqui uma força curiosa, cujo vértice ergue a peça para baixo.
Neste primeiro tempo, a escultura se fundamenta na gênese da tridimensionalidade. Este é o instante inicial do nascimento do volume, quando o plano se levanta e cria a terceira dimensão. Os cabos de aço representam a inauguração desse volume. São eles os elementos mínimos de sustentação, ou seja, somente linhas que agarram e levantam. A força exercida pela chapa em direção ao solo é enorme, e os cabos mantêm o quanto podem a chapa curvada.
A tensão existente em outras obras de Resende, transforma-se em luta e colapso nesta peça ao ar livre. Nesta peça, a amplificação da tensão atinge outro nível de estado. A diferença de volume e peso entre a chapa e os cabos é a maior que pode existir entre dois materiais nestas condições. Existe uma idéia de cinetismo, como se o momento em que se olha a peça fosse o mesmo em que ela tivesse sido pinçada.
Em um segundo momento, foi colocado um apoio por baixo da chapa em forma de duas colunas finas. A extremidade da escultura mais longe do solo havia cedido. O apoio vem como uma muleta. A escultura não quer mais existir, quer transformar-se em plano novamente, quer voltar a sua origem. A muleta a conforta e a ajuda a continuar a sua aventura tridimensional. A batalha injusta entre os cabos e a chapa foi vencida pela chapa, e os cabos servem como memória de um momento estrutural utópico primordial.
Está atualmente em estudos uma terceira etapa, em que serão colocados outros tipos de apoios, tentando-se uma solução definitiva.
Essa escultura de Resende não só faz um estudo minucioso sobre o mínimo de elementos necessários para a construção e manutenção de um volume, como também estuda a ruga como elemento antecessor à dobra nesta operação. As dobras de Amílcar de Castro, que por muito tempo pareciam citar o momento inicial do volume, agora enfrentam a nova ruga de Resende como concorrente.
As dobras executadas nas grossas peças de ferro de Amílcar se sustentam permanentemente como volumes estáveis. O espaço conquistado jamais será questionado. As forças envolvidas em sua obra estão localizadas num ato no passado e as esculturas são a lembrança dessas forças. A energia com que as dobras de Amílcar foram forjadas existe apenas na indústria siderúrgica, deste modo, não existirá contestação quanto a elas.
Diferentemente, a ruga de Resende foi, e está sendo, executada com uma energia simples de alguns homens, pelo menos em tese. Esta energia ainda é distribuída pelas pontas dos cabos e pelo suporte debaixo da obra. A força que é aplicada na obra responde a outra força de igual tamanho.
A energia aplicada na obra de Amílcar é mais concentrada no ponto da dobra e por isso é muito maior, e o que foi aplicado ali não terá uma resposta por parte do ferro. A força foi imposta com o que o homem tem de mais forte, por meio de suas máquinas, que ampliam a sua força -e o ferro aceita este fato, vencido, sem mais sinal. O único sinal que o ferro ainda mantém na obra de Amílcar é a sua condição epidérmica de engolir tudo o que adere a sua superfície, inclusive a si próprio.
Resende construiu uma escultura que é, na verdade, um grande problema estético e a colocou diante de uma escola de engenharia, como que sugerindo uma forma de desafio permanente à tecnologia da construção. Este problema transforma-se em um presente, na medida em que possibilita um diálogo com a escola, testando possibilidades e soluções para questões plásticas, normalmente excluídas da relação entre o artista e o possuidor da obra.
O centenário da Escola Politécnica foi, deste modo, comemorado com uma escultura engenhosa, que recusa-se a existir ou, senão, questiona a sua existência, precisando da ajuda do seu possuidor para completar a si própria.

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