São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A revolução das mulheres

LUIZA NAGIB ELUF
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muito pouco se sabe sobre as mulheres. As sociedades patriarcais, como a nossa, tornaram as mulheres invisíveis, e o tempo passou como se elas não tivessem existido. Durante séculos, tentou-se dar a impressão de que aquilo que as mulheres faziam, diziam, escreviam, sofriam era irrelevante, não tinha influência na ordem das coisas. O resultado foi uma história sempre parcial e incompleta dos fatos.
É claro que o mundo mudou e caminhamos para a igualdade de gênero, mas o resgate histórico das mulheres é tarefa demorada, que exige muita pesquisa e pioneirismo.
Em um trabalho sem precedentes no país, as editoras Contexto e Unesp acabam de lançar um livro denso e profundo e, ao mesmo tempo, gostoso de ler, sobre a "História das Mulheres no Brasil", organizado por Mary Del Priore, professora de história da USP, e coordenado por Carla Bassanezi, mestre em história social, também pela USP. São 20 textos, assinados por historiadores, sociólogos e educadores do mais alto gabarito, cada um deles abordando aspectos da vida das mulheres em diferentes períodos da história do Brasil.
Trata-se de um livro de extremo interesse, pois não se limita a uma coletânea de artigos. É uma obra de referência, resultante de muita pesquisa e capaz de suprir lacunas nas informações que nos chegaram da sociedade brasileira ao longo do livro.
Para que serve a história das mulheres? Como diz Priore, na apresentação do livro, "para fazê-las existir, viver e ser". Mas há, ainda, muitas razões para conhecer a história das mulheres, dentre as quais a necessidade de entender melhor a humanidade, a sociedade, a família; as estruturas de poder e suas consequências, os rumos que iremos seguir daqui para frente.
A partir do relato de viajantes e missionários, Ronald Raminelli traçou o cotidiano feminino entre as comunidades indígenas litorâneas nos séculos 16 e 17, principalmente com relação aos Tupinambás. Para os europeus, os "costumes heterodoxos" das terras do além-mar eram vistos como indícios do barbarismo e da presença do diabo. A cultura indígena foi descrita com base no paradigma teológico, carregado de misoginia. As mulheres eram seres pecaminosos por definição.
A nudez mal compreendida das índias brasileiras era um símbolo da perversão do Novo Mundo, já que não se concebia a hipótese dos costumes indígenas serem diferentes do universo cristão. Para os missionários, esta hipótese feria a idéia da monogenia dos seres humanos e de que todas as pessoas são descendentes de Adão e Eva.
As índias velhas, designadas como "as selvagens dos seios caídos", foram usadas para simbolizar a degeneração, a decrepitude e o canibalismo das sociedades tribais. Os homens foram poupados pelos missionários e viajantes de tão nefasta representação, mas as mulheres receberam uma dupla carga estigmatizante: primeiro por serem mulheres e segundo por serem velhas. Assim, serviram aos interesses dos colonizadores, que pretendiam evitar a integração das comunidades indígenas da nova sociedade que se criava no Brasil. As índias, principalmente as idosas, representavam a resistência selvagem contra os empreendimentos coloniais europeus.
As mulheres brancas no Brasil Colônia, cuja condição é descrita por Emanuel Araújo, não lograram maior tolerância social, pois os costumes misóginos, trazidos pela Igreja Católica e consolidados nas leis do Estado, visavam a exercer controle absoluto sobre a existência feminina e sua sexualidade. Com a Inquisição, estabeleceu-se uma relação direta entre a mulher, a bruxaria e o sexo.
No "Malleus Maleficarum", célebre tratado de demonologia escrito por dois dominicanos alemães, Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, publicado em 1486, afirmava-se que "houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. Em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona a mente".
Em outro trecho do tratado, conclui-se: "Toda a bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres".
O poeta Gregório de Matos, que viveu em Salvador no século 17, fazia eco a esta crença, ao criticar violentamente certa mulher tida como feiticeira: "Dormi com o Diabo à destra/ e fazei-lhe o rebolado,/ porque o mestre do pecado/ também quer a puta mestra,/ e se na torpe palestra/ tiveres algum desar,/ não tendes que reparar,/ que o Diabo quando emboca/ nunca dá a beijar a boca/e no cu o eis de beijar".
Com relação ao adultério, há no texto de Emanuel Araújo a notícia de um homem preso em 1809 por ter matado a mulher que surpreendera deitada em uma rede com um estranho. Pedia ele ao "Desembargo do Paço" sua liberdade, pois "levado de honra e brio cometeu aquela morte em desafronta sua, julgando-se ofendido". O parecer dos desembargadores foi que o assassinato era "desculpável pela paixão e arrebatamento com que foi cometido". Desde aquela época, portanto, construía-se a tese da legítima defesa da honra, até há pouco tempo usada no Brasil, perante os tribunais do júri, para absolver assassinos de mulheres.
Percebe-se, ao longo da história, que a condição feminina no Brasil evoluiu lentamente nos últimos cinco séculos. Muitos dos costumes de outrora remanescem nos dias de hoje, com algumas variações, apesar do advento da Constituição Federal de 1988, que assegura a igualdade de gênero.
Um exemplo claro são os trajes femininos. As roupas adequadas às mulheres "de família" foram e são motivo de muita preocupação da moral patriarcal. Atualmente, as críticas podem ser consideradas mais veladas, às vezes travestidas de escárnio, como no caso de se chamar uma mulher de "perua", mas o fundo moralista está ainda presente.
O que as mulheres podem ou não usar, desde as vestimentas até os adornos, é ditado pelos homens: antigamente, porque eles detinham o poder absoluto, hoje porque (ainda) comandam o mundo da moda. O moralista Nuno Marques Pereira, no século 17, exortava as mulheres para que fossem "muito honestas no vestir, porque as galas desonestas estão indicando corpo lascivo".
Evidencia-se, em todos os textos constantes de "História das Mulheres", de forma cabal e documentada, que o gênero feminino jamais foi considerado digno de respeito e sujeito de direitos humanos. A necessidade de reafirmar a inferioridade da mulher é recorrente, a fim de justificar sua absoluta submissão.
Norma Telles, ao falar sobre as escritoras no Brasil, cita o número 425 da "Revista Ilustrada", de 1886, destacando artigo intitulado "O Eterno Feminino", sobre as reivindicações das mulheres. Dizia-se que "é dos rostos imberbes, como os do sexo gentil, que até hoje têm vindo as maiores desgraças ao mundo e os mais atrozes sofrimentos à humanidade".
Os documentos comprovam que as mulheres nunca se submeteram ao jugo patriarcal sem reagir de alguma forma, mas, por razões que não nos cabe analisar neste espaço, foram sempre vencidas. A história das mulheres é, infelizmente, uma história de derrotas, de sofrimento e de opressão. Mas é, também, uma história de perseverança, coragem e amor. O futuro, que começa agora, será compensador.
O texto da Paola Cappellin Giulani, sobre a sociedade de hoje, demonstra que a "modernização" tem atingido de maneira diferente os diversos grupos sociais e produzido várias formas de conflito. No processo de conquista da cidadania, as mulheres enfrentam situações peculiares, pois, além das questões políticas e econômicas, têm que combater as discriminações de gênero. A luta por melhores condições de vida por parte das mulheres trouxe uma nova força aos movimentos sindicais, ao mesmo tempo em que abriu uma crise na divisão sexual do trabalho, na própria representação sindical e na família.
Giulani afirma que, a partir do fim dos anos 70, os movimentos das trabalhadoras estão interpelando a sociedade, colaborando decisivamente para o processo de amadurecimento das relações sociais e o aperfeiçoamento da democracia.
O livro termina com uma narração da escritora Lygia Fagundes Telles, na qual ela começa citando Norberto Bobbio para dizer que a revolução da mulher foi a mais importante revolução do século 20. Com muita sensibilidade, Lygia encerra as 672 páginas com chave de ouro. Poeticamente, ela sintetiza a condição feminina: "A mulher escondida. Guardada. Principalmente invisível, a se esgueirar na sombra. Reprimida e ainda assim sob suspeita. Penso hoje que foi devido a esse clima de reclusão que a mulher foi desenvolvendo e de forma extraordinária esse seu sentido da percepção, da intuição, a mulher é mais perceptiva do que o homem".

Texto Anterior: HOBSBAWM; ARCHIVOS; ENSAIOS; SÃO PAULO; CACHORROS; WOOLF; LANÇAMENTO 1; LANÇAMENTO 2; LANÇAMENTO 3; REVISTA
Próximo Texto: Imaginários de vida e morte
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.