São Paulo, sexta-feira, 20 de junho de 1997
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Diva viveu decadência precoce

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Maria Callas morreu duas vezes. A primeira morte vitimou sua voz. O processo estava latente já em 1957 e consumou-se no início dos anos 60. A segunda morte foi em Paris, em 1977.
O atestado de óbito registra problemas cardíacos, mas seu primeiro marido, Giovanni Battista Meneghini, desconfia de suicídio.
As duas mortes estão, de certo modo, estreitamente relacionadas. Callas, diz o maestro Nicola Rescigno, não compreendeu de início a extensão da tragédia que se abateu sobre suas cordas vocais.
Reagiu de maneira desencontrada. Depois, deprimiu-se. Tornou-se uma consumidora obsessiva de tranquilizantes.
"Ela vivia, de início, como uma vestal. Jantar fora era uma exceção em sua agenda. Quando sua rotina se tornou mais mundana, não foi apenas a voz que padeceu. Foi toda uma maravilhosa maquinaria que entrou em pane", diz Rescigno.
Ele se refere especificamente ao período -verão de 1959- em que Callas conhece o armador grego Aristóteles Onassis, um notório ignorante nos meandros da arte lírica. De soprano e festejada prima-dona, ela passa a integrar o "jet set" internacional.
Uma de suas 20 biógrafas, Arianna Stassinopoulos, insinua que Callas se perdeu ao se deixar manipular pelos homens. Meneghini, marido e empresário oficioso, levou seu potencial artístico à exaustão, fazendo-a cumprir uma agenda artística excessiva. Onassis encarregou-se de concluir o estrago.
A grande síntese sobre o que aconteceu com Callas foi escrita por Will Crutchfield, em longo artigo de novembro de 1995 na revista "The New Yorker".
O processo de decadência vocal apresentou os primeiros sintomas em 1957, quando a soprano tinha apenas 34 anos incompletos. Evitou uma récita da "Sonnambula", contratada à sua revelia, no Festival de Edimburgo (Escócia). Seguem-se negociações para reduzir o número de suas apresentações na Ópera de San Francisco.
Em 1958, não consegue cantar até o fim uma "Norma", no Scalla de Milão. O presidente da República Italiana estava na platéia. A imprensa acusou Callas de grosseria e deselegância.
Ninguém percebia, na época, que sua voz estava enferma. Uma cantora de ópera consegue frequentemente atuar até os 55 ou 60 anos. A tragédia estava no fato de um colapso precoce ocorrer justamente com o maior fenômeno do mundo lírico no século 20.
Em seu artigo no "The New Yorker", Crutchfield descreve o quanto, nos anos 50, a ascensão de Callas modificou o panorama operístico. Algo equivalente, neste século, à carreira do barítono russo Feodor Chaliapin (1873-1938).
Não era apenas uma soprano criativa. Possuía uma técnica de "crescendo" sutil ao atingir as notas. Sabia uni-las com delicadeza (legatos). Não precisava de duas ou três frases de aquecimento para se lançar em direção aos agudos.
A voz de Callas morreu bem antes da morte da própria artista, que passou a viver uma existência isolada, quase patética.
(JBN)

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