São Paulo, sexta-feira, 20 de junho de 1997
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Mostra Documenta não quer apenas vender salsicha e cerveja

CELSO FIORAVANTE
DA REPORTAGEM LOCAL

O desenvolvimento ético e estético da arte em contraposição ao mercado, à burocracia e ao poder econômico é o tema principal desta terceira e última parte da entrevista que a curadora da Documenta de Kassel, Catherine David, concedeu com exclusividade à Folha.
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Folha - A Documenta, em sua última edição do milênio, pretende prever o futuro da arte contemporânea?
David - Eu não sou advinha para saber o que será da arte contemporânea, mas nesse momento podemos ver que se desenvolvem pensamentos totalmente reacionários e que muitas pessoas não têm qualquer imaginação.
Por isso, é importante mostrar que o espaço estético contemporâneo não é uma brincadeira. Existem também posições, idéias e questões importantes que devem ser mostradas e discutidas na Documenta.
Folha - O que é mais difícil para a Documenta, descobrir valores individuais instigantes ou identificar novos movimentos?
David - Se olhamos as coisas mais atentamente, podemos notar atitudes comuns a vários artistas, com sensibilidades e urgências comuns nesse momento. Mas não temos vontade ou necessidade de descobrir isso e em seguida colocar uma etiqueta. Está claro que há um movimento, mas também está claro que em um grupo se definem figuras singulares.
Folha - O Brasil tem uma posição de destaque na Documenta. Você tem interesses específicos em relação à arte brasileira?
David - Conheço melhor a arte brasileira do que a arte chinesa ou indiana, por exemplo. O Brasil é um país que participou da modernidade dos últimos 50 anos de uma maneira muito singular e forte. Não se trata de uma participação nacional, mas me parece que a cultura visual brasileira, os artistas plásticos em particular, têm uma grande energia.
Folha - A Documenta vai refletir a crise da apresentação da obra de arte em museus e galerias?
David - Isso será muito discutido no evento "100 Dias - 100 Convidados". Mas eu não diria que se trata de crise, mas de um limite histórico da maneira como se articula uma exposição, um limite na apresentação de uma mostra em um momento em que as obras podem circular na Internet, no vídeo... É preciso saber por que convocamos as pessoas para ver algo que poderiam ver em casa.
Está claro que certas formas de estéticas contemporâneas questionam muito fortemente a instituição e o espaço museológico, a partir do momento que certas obras se articulam em lugares diferentes, em formas de linguagem diferentes. Espero que isso seja visível na Documenta.
Folha - A Documenta pretende discutir cinema, teatro, rádio, internet...? Por que você convidou criadores de todas essas áreas?
David - Convidamos os artistas para que trabalhem nos meios que os interessam. Não fui eu que inventei o cinema, mas vejo que muitas questões interessantes estão sendo desenvolvidas nesse meio. A cultura hoje se exprime muito bem por meio de imagens em movimento. É importante, por exemplo, ter a presença da África por meio do cinema, que me parece um idioma muito privilegiado.
Folha - A cidade de Kassel interfere na Documenta?
David - Essa é uma pergunta muito complexa. A Documenta é financiada pelo Estado alemão, pela região e pela cidade de Kassel. A cidade, obviamente, quer tornar a Documenta o mais visível possível, pois a sedia desde 1955, e hoje Kassel é a Documenta e a Documenta é Kassel. Isso cria, com certeza, mal-entendidos, ficções...
É muito difícil falar da burocracia. Basta ver que somos uma equipe muito qualificada e sofisticada, mas que trabalha em condições nada sofisticadas.
Temos um escritório localizado em uma velha escola. Não estamos no MoMA de Nova York e sabemos muito bem disso. Temos que esquecer isso e nos adaptarmos para podermos refletir.
Folha - A Documenta funciona como um tipo de intervenção urbana na cidade de Kassel?
David - Temos esse lado, a partir do momento em que a mostra funciona em diversos prédios e se torna uma presença muito visível na cidade. Mas é claro que a maior parte dos problemas vem do fato de a Documenta poder trazer muito dinheiro, e essa é a única coisa que realmente interessa à cidade.
A direção da mostra, porém, está preocupada em criar reflexões articuladas sobre o contemporâneo, e não em vender salsichas e cerveja. Esse não é o meu papel. É preciso prestar atenção para que as consequências não se tornem a causa. Não se faz uma Documenta para se ganhar dinheiro.
Folha - Qual o orçamento da Documenta?
David - Tudo incluído, são 20 milhões de marcos (cerca de R$ 13 milhões), sendo que oito milhões são subsidiados pelo Estado, região e cidade, e 12 milhões são financiados por nós mesmos, com a venda de bilhetes, livros etc.
Folha - O que tem sido mais difícil na organização da Documenta?
David - O mais difícil tem sido produzir um acontecimento cultural em um momento em que todo mundo está mais interessado em frequentar quermesses, eventos mediáticos. É muito difícil impor o rigor e a reflexão em um momento em que todos querem ganhar muito dinheiro.

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