São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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O FFHH do professor Cardoso; Coisa grande; Reforma?; CURSO MADAME NATASHA DE PIANO E PORTUGUÊS; No vestibular da FGV o professor não sabia; Lester Thurow; O Pronex, um caso de uso científico do gogó

ELIO GASPARI

O FFHH do professor Cardoso
Algo de estranho está acontecendo na alma d'El Rey. Está tentando fritar uma passarinhada, jogando na panela os governadores tucanos de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, à custa de uma aproximação com Paulo Maluf, Cesar Maia e Itamar Franco. Até aí, nada demais, porque seu negócio é reeleição.
Estranho mesmo, foi o FFHH que emergiu da entrevista que concedeu aos jornalistas Hélio Campos Mello, Eumano Silva e Luciano Suassuna. Foi uma exibição explícita de egocentrismo. Usou o pronome "eu" 56 vezes, numa incidência de um "eu" a cada 48 palavras. É uma taxa inédita. Em três das entrevistas coletivas que deu no Planalto, esse índice oscilou entre um "eu" a cada 53 ou 73 palavras. Para que se entenda a relação do professor Fernando Henrique Cardoso com FFHH, é preciso lembrar que um (o primeiro) nada tem do egomaníaco de manual. Mesmo na Presidência, numa entrevista serenamente acadêmica, concedida a Vinicius Torres Freire, o professor deu-se ao luxo de um "eu" a cada 425 palavras.
Cardoso estava com uma nova opinião a respeito de FFHH quando bateu na taxa de 48. Um FFHH piorado.
Disse coisas assim:
Sobre seu estilo:
"Nunca digo 100% de nada a ninguém".
Se FFHH não conta 100% a ninguém, ninguém acredita que ele seja capaz de contar 100% a quem quer que seja. É um estilo, mas não é uma solução. Por causa dele Tancredo Neves não o colocou no ministério.
Sobre o senador José Eduardo Andrade Vieira:
"Me dói no coração o Bamerindus não ser mais dele".
Dói ao cérebro ver que o presidente em cujo mandato se deram as mortes de Caruaru e o massacre dos sem-terra, só tenha revelado tamanha tristeza diante do problema de um amigo sem-banco.
Mas sempre resta o consolo de ler o poeta Cruz e Souza:
"Ah! que feliz um coração que escuta
As origens de que é feito!
E que não é nenhuma pedra bruta.
Mumificada no peito!"

Coisa grande
Está na mesa de FFHH um projeto de reorganização ministerial. Prevê, entre outras coisas, o surgimento da Pasta do Caixa. Ela unificaria todas as fontes de arrecadação do governo federal, juntando a Secretaria da Receita Federal ao sistema de coleta da Previdência.
Outra novidade é a fusão, num só ministério, de todas as atividades relacionadas com comércio exterior.

Reforma?
Foi para o arquivo o apoio do governo à criação do voto distrital misto. É uma velha idéia, consta da biografia de quase todos os grão-duques do governo e do programa dos partidos que sustentam sua maioria parlamentar. Não consta do projeto dos parlamentares que não querem mudar o atual sistema eleitoral.
Não são muitos, mas podem atrapalhar a reeleição e o projeto das alianças infinitas do Planalto.

CURSO MADAME NATASHA DE PIANO E PORTUGUÊS
Madame Natasha tem horror a música. Ela combate a terceirização do idioma. Concedeu uma bolsa de estudo a Marco Aurélio Alencar, secretário da Fazenda do Rio de Janeiro, pelo seguinte palavrório:
-O Estado nietzscheano, o "monstro" inimigo dos cidadãos, ganha contornos hediondos com a desestruturação da máquina pública. A ojeriza do pensador alemão ao organismo estatal (descontextualizada das paixões antagônicas despertadas pelo idealismo de Hegel e pelo positivismo do século 19) pode ser adaptada à babel institucional em que nos encontramos hoje: o Estado não cumpre as funções básicas de assistência nas áreas de educação, saúde e segurança pública.
Madame acha que ele quis dizer o seguinte:
-O governo de papai é muito ruim.

No vestibular da FGV o professor não sabia
A Fundação Getúlio Vargas de São Paulo deveria matricular num bom curso de segundo grau os professores que redigiram a pergunta 33 da prova de história do seu vestibular.
Essas provas são quase sempre medíocres, porque a avareza das escolas produz exames de múltipla escolha que testam apenas o decoreba, contrapondo-o a opções geralmente asnáticas. A da FGV acrescentou ignorância à mediocridade.
Pediu-se à garotada que dissesse quais as características da Constituição de 1824. Tinham cinco escolhas, quatro erradas e uma certa:
a) instituiu o voto censitário, era parlamentarista e criava o Poder Moderador;
b) era monarquista e mantinha o sistema clássico de divisão em três poderes;
c) assegurou o pluripartidarismo, garantindo grande rodízio no governo imperial;
d) era de caráter populista e autoritário e praticamente assegurou uma verdadeira ditadura imperial;
e) era parlamentarista e tinha uma postura nacionalista, levando rapidamente a inúmeros conflitos com os ingleses.
Deixando-se de lado a mesquinharia das minúcias que diferenciam cada um dos itens, o primeiro e o quinto estão errados porque o parlamentarismo veio depois de 1824. O segundo também, porque havia quatro poderes, os três de sempre, mais o Moderador, que ficava com o monarca. O item "c" morre porque o sistema não era pluripartidário.
Resta o item "d". Seria o certo.
Dois professores de direito constitucional e ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (Paulo Brossard e Célio Borja), bem como o último presidente do STF (Sepúlveda Pertence), informam que ele está tão errado quanto os outros. A Constituição de 1824 não era populista, pelo simples motivo que o Brasil da primeira metade do século 19 não conhecia o fenômeno do populismo. Também não se pode dizer que fosse autoritária, porque garantia as liberdades individuais. O vestibular é uma selvageria pedagógica. A múltipla escolha é uma tortura intelectual. A isso não se deve juntar questões produzidas pelo desconhecimento da matéria que se cobra a adolescentes que jogam um pedaço da vida numa tarde de prova.

Lester Thurow
(59 anos, professor do Massachusetts Institute of Technolgy, autor do livro "O Futuro do Capitalismo". Chega ao Brasil na próxima semana, para a Conferência Internacional para Integração e Desenvolvimento, da Confederação Nacional do Transporte.)
*
-Primeiro a pergunta obrigatória para todo economista estrangeiro: o desequilíbrio das contas externas brasileiras é uma ameaça a sua economia? Que nota o senhor daria para a gestão econômica brasileira, A, B ou C?
-Um déficit de contas correntes de 4% ao ano é coisa considerável. O problema da economia brasileira está na sua capacidade de fazer a transição da estabilidade para o crescimento. As indústrias e a mão-de-obra tem que se tornar mais competitivas. Um país como o Brasil tem que pensar numa estratégia de crescimento de 7% ao ano. Sem a transição para o crescimento, um plano de estabilidade acaba sendo apenas um programa de austeridade. Minha nota para a gestão econômica é B. Não é C, porque foi bem-sucedida no combate à inflação. Não é A porque falta o crescimento.
-No seu livro o senhor diz que os países em desenvolvimento devem dar mais atenção à importação de tecnologia do que à importação de capital. Os países latino-americanos não estão fazendo o contrário?
-É o que me parece. A China avalia os projetos de investimentos que recebe pela quantidade de tecnologia que eles trazem. Essa é a melhor estratégia. O problema da poupança, bem ou mal, pode ser resolvido internamente. Alguns países podem poupar mais, como os asiáticos, outros poupam menos, como os latino-americanos, mas com a tecnologia o problema é diferente. Ela simplesmente tem que vir de fora, ou não vem. De fora para dentro, o problema dos países em desenvolvimento não é capital, é tecnologia. De dentro para fora, é educação. No Brasil, investe-se muito nas universidades, o que é bom, mas não qualifica mão-de-obra.
-O senhor sustenta que o capitalismo precisa de lances de gênio, como o de Colombo atravessando o oceano. Colombo resultou num processo de colonização. Vem aí uma recolonização?
-Não. Isso porque no final do século 20 a economia nacional norte-americana, bem como a brasileira ou a tailandesa, não existirão mais como economias nacionais. Será necessário entender que o progresso exigirá das sociedades o treinamento dos corredores de maratona. Não é coisa de anos, mas de décadas. Os Estados Unidos levaram 120 anos para se erguer. O Japão levou 130 anos correndo atrás dos Estados Unidos.

O Pronex, um caso de uso científico do gogó
FFHH precisa do segundo mandato por muitos motivos. Um deles é para cumprir o que assinou. Para fazer o que dá a impressão de já ter feito. Ao exemplo: no dia 10 de abril do ano passado, FFHH e seu ministro da Ciência e Tecnologia, José Israel Vargas, assinaram um decreto (nº 1.857) informando aos gentios a criação do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência na pesquisa científica. Como os governos não vivem sem siglas, denominaram-no Pronex.
Dois dias depois, o doutor Israel avisou que o programa teria US$ 58 milhões. Vieram os cortes de despesas, mas o Ministério da Ciência e Tecnologia avisou: "O presidente Fernando Henrique Cardoso garantiu que não faltarão recursos para o Pronex".
Do outro lado da linha, no mundo do governo real, estava o cientista Wanderley de Souza, um dos mais renomados biólogos brasileiros. Se as citações em revistas especializadas são boa medida para aferir o prestígio internacional de um cientista, ele tem 1.278 em 226 publicações.
Wanderley de Souza inscreveu no Pronex um projeto para estudar o comportamento dos parasitas no organismo dos mosquitos que os transmitem aos seres humanos. Coisa útil para o combate ao Mal de Chagas, leishmaniose e malária (15 milhões de doentes em Pindorama). Útil também para aprofundar o estudo de parasitas desconhecidos (mais de 20 já catalogados) descobertos em animais da Amazônia. A equipe junta quatro universidades, 36 doutores e 112 estudantes de pós-graduação.
Inscreveram-se 500 projetos, foram selecionados 77 e o do professor Wanderley foi o primeiro classificado no grupo das ciências biológicas. Atribuíram-lhe R$ 1,9 milhão, dinheiro suficiente para sustentar quatro anos de pesquisas.
Os cheques viriam em parcelas. A primeira seria de R$ 600 mil, para logo. Nem pensar. Em dezembro deram-lhe a metade e o restante ficou para março deste ano. A pesquisa precisava do dinheiro sobretudo para comprar equipamentos. Diante da promessa, planejou-se a importação de microscópios, ultracentrifugadoras e reagentes.
Passou o mês de março e o dinheiro não apareceu. Chegou-se a junho nem sombra. Todos os 77 projetos do Pronex estão esperando.
Já se suspenderam diversas compras, entre as quais a de um microscópio de varredura de alta resolução. Seria a primeira máquina desse tipo a ser instalada no Brasil.
Até aí pode-se dizer que o governo funciona bem no mundo das promessas, capenga nos avanços, mas, bem ou mal, toca a rotina. (Isso fazendo-se de conta que ninguém notou o sumiço de R$ 38 milhões do Conselho Nacional de Pesquisas, quantia equivalente à primeira parcela de despesas do "novo" Pronex.)
Na rotina, o professor está sendo massacrado. Sempre que importa uma mercadoria, depende da saúde financeira da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quando Tesouro não libera os recursos que deve à UFRJ, ela caloteia o INSS e por causa disso a Alfândega lhe corta as franquias tributárias (no que faz muito bem). Hoje, ela retém um projetor associado a um microscópio eletrônico.
Em outros casos, como no de reagentes químicos, retém material perecível. É pega ou larga. Se os pesquisadores esperam, perdem a compra. Solução: pagam os impostos. Resultado: um reagente americano de US$ 80 custa outros US$ 230 em taxas. Hoje o professor Wanderley está com US$ 12 mil de reagentes retidos.
A equipe de biólogos da UFRJ, em parceria com pesquisadores venezuelanos, desenvolveu novas drogas para o Mal de Chagas e a leishmaniose. Foram testadas em animais e já começaram a ser aplicadas a doentes. É certo que serão mais eficazes que os remédios existentes.
Os estudos desses biólogos relacionam-se com doenças de pobre. Se o governo associasse o falar ao fazer, o financiamento a essa pesquisa seria um exemplo de boa administração. Para usar a linguagem da teoria tucana, pesquisadores com recursos de Primeiro Mundo ajudariam a acabar com as doenças do Brasil arcaico. Na prática, fez-se uma propaganda de Primeiro Mundo e administra-se o Pronex pelas regras da bagunça de sempre.

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