São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Jurados têm ligação com donos de terra

FERNANDA DA ESCÓSSIA
DA ENVIADA ESPECIAL

8 - O júri
Pelo menos cinco dos sete jurados que condenaram José Rainha têm ligações afetivas, culturais ou econômicas com a família do fazendeiro morto ou com proprietários rurais da região.
A dona-de-casa Valéria Camporês, 30, tem relações cordiais com a família da viúva de José Machado Neto, Aline Castro Machado. Disse que, quando solteira, Valéria passava carnavais na casa de Alenice Castro, irmã de Aline.
A mãe de Valéria era íntima de Alenice Castro e amiga das demais filhas de Alberto Castro, de quem o genro José Machado Neto herdou a fazenda Ypueiras.
Português radicado, Alberto Castro filiou-se à loja maçônica de Conceição da Barra. A maçonaria também se instalou em Pedro Canário, onde colabora com obras sociais -como a construção do fórum onde Rainha foi julgado.
Dois dos jurados, os comerciantes Hélio Borsoi, 56, e William Colodetti, 32, são da loja maçônica de Pedro Canário. Borsoi conhecia o fazendeiro morto, cliente de sua loja de materiais de construção.
A Folha apurou que, ao receberem as intimações, Borsoi e Colodetti declararam seus votos pela condenação do réu.
A socióloga e historiadora Rosângela Agnoleto, 34, é mulher do vice-prefeito Hélio Freitas, um dos maiores pecuaristas da região.
Rosângela era a única jurada que nunca participara antes de um júri. Ela chorou no tribunal. Durante a votação na sala secreta, fez perguntas aos advogados de defesa e perguntou ao juiz se não havia contradições nos quesitos.
O marido de Rosângela, Hélio Freitas, é presidente do Sindicato de Proprietários Rurais da cidade, criado há 20 dias. Tem 500 hectares de terra e cria cavalos quarto-de-milha. Amigo de muitos fazendeiros da região, Freitas providenciou com eles os cavalos e bois que participaram dos rodeios do Forró da Tábua Lascada, organizado na cidade neste final de semana.
O vice-prefeito disse que aprovou a decisão dos jurados, embora afirme acreditar que sua mulher tenha absolvido Rainha.
O evangélico Nilton Novaes, 35, tem uma padaria e é assessor do presidente da Câmara de Vereadores, Adelino Canal (PSD), irmão do prefeito Ataíde Canal (PPB).
Eleito numa coligação que incluiu PPB, PT, PMN, PSD e PL, o prefeito é proprietário rural, cria cavalos de raça e tem uma empresa de aluguel de tratores e máquinas de construção.
A jurada Iramaia Inês Araújo, 36, é mulher do vereador Reinaldo Camporês, dono de um restaurante anexo a um posto de gasolina e parente do marido da jurada Valéria Camporês. Tímida, mineira, disse que o fazendeiro morto lhe parecia "uma boa pessoa".
O último jurado, Almerindo de Jesus Pereira, 39, é funcionário da empresa de ônibus Águia Branca. Concluiu apenas o primeiro grau e já foi jurado mais de seis vezes. Pouco falou sobre o julgamento.
Todos os jurados afirmaram ter votado de acordo com os autos e negaram ter sido influenciados por relações com algum dos lados.

9 - As testemunhas
Principal testemunha da acusação, por ser a única que diz ter visto Rainha na fazenda invadida, o caminhoneiro José Jorge Guimarães, o Zé do Coco, 53, foi indiciado como co-autor do crime no Inquérito Policial Militar.
Zé do Coco não compareceu ao primeiro julgamento. A acusação informou ao juiz que ele tinha recebido ameaças. Na semana passada, a defesa também fez reclamações públicas, pedindo segurança para a testemunha.
Nos depoimentos na polícia civil, na PM e na Justiça, o caminhoneiro afirmou que levava os sem-terra para a fazenda Ypueiras quando um homem apareceu na estrada e subiu no caminhão.
A testemunha afirmou ter sabido por José Bezerra de Souza, o Zé Paraíba, que aquele homem era Rainha e o descreveu Rainha como um homem alto, moreno claro, de rosto bem cheio, mais ou menos gordo e de cabelo cacheados.
Zé do Coco é dono de um pequeno restaurante no município de Montanha, a 40 km de Pedro Canário. Ao perceber a chegada da reportagem da Folha, seu filho Jorge fez com que saísse de casa.
A segunda mulher de Zé do Coco, Marília, 33, e Jorge, 30, disseram que o ex-caminhoneiro recebeu telefonemas antes do julgamento para que ficasse calado. Um carro preto teria rondado a casa.
"É pressão demais, a gente não sabe nem de quem é", disse Marília, calando-se em seguida.
Segundo vizinhos do restaurante, Zé do Coco é dono do local há pelo menos dez anos. O restaurante tem quartos que servem de alojamentos a viajantes e operários de passagem pela cidade.
O caminhão que transportou os sem-terra até a fazenda Ypueiras é usado hoje por Jorge Guimarães para entregar leite nas redondezas.
Por três vezes a Folha tentou falar com Zé do Coco. Jorge disse que o pai tinha saído e que não daria entrevista, por temer represálias contra si e contra sua família.
"Se depender de mim, ele não vai depor no próximo também", afirmou Jorge Guimarães. Perguntado sobre a descrição que o pai fizera de Rainha, disse: "Zé Rainha é gordo? Sei lá como ele foi falar isso", e recusou-se a dar qualquer outra declaração.
O agricultor Jurandir Santos Mendes, também arrolado como testemunha de acusação e ainda não ouvido no processo, disse não ter certeza de que o homem que viu na fazenda invadida, na noite do domingo, era José Rainha.
Mendes mora em Floresta do Sul, perto da fazenda Ypueiras, e foi ao local da invasão com o gerente da fazenda, Etevaldo Machado, na noite de 4 de junho, para inspecionar a área.
Segundo Mendes, cinco homens estavam no local. Um deles era Gilberto Jesus Silva, o Cascabulho, réu no processo e denunciado. Um ano depois, Mendes disse que viu Rainha na televisão e o reconheceu como outro dos invasores.
"Mas nem tenho mais certeza se era Rainha. Não fui depor no primeiro julgamento e não vou ao próximo", afirmou.

10 - Outras mortes
Depois das mortes do fazendeiro e do PM, três líderes de trabalhadores rurais foram mortos no norte capixaba em 1989.
No dia 18 de julho, o sindicalista Verino Sossai foi morto na porta de casa por quatro homens armados. Sossai fora denunciado no processo da invasão da fazenda Ypueiras como co-autor dos crimes, sob suspeita de ter ajudado a fuga de Zé Paraíba, apontado como principal organizador da invasão e responsável pelas mortes.
Foram denunciados, como autores do assassinato de Sossai, José Sasso, envenenado na prisão, e Rubens Banhos Pereira, absolvido por falta de provas.
No dia 19 de julho, o sindicalista Paulo Damião Tristão, o Purinha, foi morto em Linhares quando panfletava contra a UDR (União Democrática Ruralista).
Em 12 de setembro, Valdício Barbosa dos Santos, o Leo, diretor do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Pedro Canário, foi morto em Floresta do Sul.
Um dos denunciados, Gilberto Marçal da Rocha, está foragido. O outro é o policial civil Romualdo Eustáquio Faria. A denúncia do promotor Emanoel Arcanjo de Souza Gagno afirma que o crime foi por emboscada e mediante paga, mas não aponta mandantes.
A viúva de Santos, Edite França Barbosa, afirmou, em depoimento para o inquérito civil, que fazendeiros locais tinham ameaçado seu marido. No depoimento à Justiça, retirou a acusação.
A promotora Elfrida Krüger, que coordena o caso de Valdício Barbosa dos Santos e atua na acusação de Rainha, disse não ver relações entre os dois casos.
"Você vê alguma relação? Eu não. Acho que a morte de Leo foi caso pessoal. Você acha que tudo aqui tem ligação com a questão agrária, menina, que coisa chata", afirmou a promotora à Folha.
O juiz Sebastião Mattos Mozine disse ver indícios entre as mortes do fazendeiro e as dos trabalhadores rurais, especialmente nos casos de Sossai e de Valdício Barbosa.
"Há indícios, porque eram trabalhadores rurais, mas não há provas. Precisamos de testemunhas, cadê as testemunhas?"
Moradores, líderes comunitários, líderes partidários e advogados de Pedro Canário afirmaram que, depois da morte do fazendeiro, várias pessoas ligadas ao movimento de trabalhadores rurais foram ameaçadas de morte. O ex-padre Derli Casali, que atuou entre 1982 e 1988 na paróquia de Pedro Canário, diz que havia uma lista com pessoas ameaçadas de morte, da qual seu nome fazia parte.

11 - Os assentamentos
Organizados em cooperativas, os assentamentos do MST (Movimento Nacional dos Trabalhadores Sem Terra) no norte capixaba começam a sair da agricultura de subsistência, fazem um planejamento do plantio e já vendem boa parte da produção.
Nos municípios de Pedro Canário e Conceição da Barra há sete assentamentos. Um dos mais antigos, o Castro Alves, implantado em 1988, fica ao lado da fazenda Ypueiras. Segundo os autos do processo, os invasores teriam se reunido lá antes da fuga.
Josias Xavier Castro, 31, que vive no assentamento desde a invasão, disse que Rainha não passou pelo local depois das mortes do fazendeiro e do soldado. "Rainha já estava no Ceará", afirmou.
O assentamento foi montado numa área de 900 hectares desapropriada pelo governo federal. A terra foi dividida entre 129 famílias. Em regime de cooperativa, os assentados produzem hoje 150 sacas de milho, 200 de feijão e 2.000 de farinha de mandioca por ano.
A produção é vendida nas feiras próximas. Para este ano, a cooperativa planeja ampliar para 200 hectares a plantação de café. O assentamento tem três escolas e vai inaugurar a quarta.

12 - Os rumos do processo
Na preparação para o novo julgamento, a acusação e a defesa de Rainha vão partir à cata da prova material capaz de confirmar uma das duas versões.
A defesa deve buscar no Ceará um registro da presença de Rainha, uma reportagem, uma ata de reunião ou um documento. Como prova testemunhal, tem a opção de intimar o ex-prefeito de Quixadá Ilário Marques.
No depoimento que consta dos autos, Rainha disse ter ouvido pela televisão, na casa de Marques, a notícia do crime. Ele afirmou que estava no Ceará desde 1988 e hospedado na casa de Ilário Marques havia um mês.
Um dos advogados de Rainha, Aton Fon Filho, deve ir ao Ceará para refazer o suposto percurso do líder do MST e buscar provas de sua presença no assentamento.
Fon afirmou que tem a opção de trazer participantes da invasão de terras na qual Rainha diz ter tomado parte, nos dias 3, 4 e 5 de junho, ou de fazer um vídeo com entrevistas dos agricultores.
Localizar a arma do crime pode contar para a acusação. A promotora Elfrida Krüger já pediu que sejam anexadas ao inquérito duas fitas de vídeo, uma com imagens da fazenda invadida, supostamente gravadas no dia 9 de junho, e outra com imagens de uma suposta invasão do MST no Paraná.
No primeiro julgamento, as fitas foram recusadas como provas pelo juiz Sebastião Mattos Mozine, porque a defesa não teve tempo para tomar conhecimento delas.

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