São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Eu sou um "enfant terrible"

NORMAN MAILER

Quando eu tinha 25 anos, fui chamado de um dos mais importantes escritores norte-americanos, por causa do romance que escrevi, situado na Segunda Guerra Mundial, "Os Nus e os Mortos". Depois disso, escrevi "Barbara Shores" e "The Deer Park", mas 20 anos se passaram antes de lançar outro livro tão bem recebido quanto "Os Nus". Foi "Os Exércitos da Noite", um relato em primeira pessoa da marcha maciça até Washington, em 1967, em protesto contra a Guerra do Vietnã.
Deram-me tanto o Prêmio Pulitzer quanto o National Book Award. Em 1979, ganhei meu segundo Pulitzer por "0 Canto do Carrasco", que é a história verídica do assassino condenado Gary Gilmore, que morreu diante de um pelotão de fuzilamento na Prisão Estadual de Utah.
No decorrer dos anos, eu me tornei alvo de estudiosos que escreveram livros analisando meus livros, tentando explicar o que eu realmente quis dizer quando escrevi uma linha... o que eu realmente, realmente quis dizer. Nestes anos todos, me interessei pelo socialismo, pela cultura "beat", pelo existencialismo e pelo misticismo, mas, apesar das homenagens e prêmios que recebi, acumulei dívidas de mais ou menos US$ 400 mil, em função dos pagamentos feitos a ex-mulheres e das pensões alimentícias dos meus nove filhos.
Os jornais viviam repletos de informações dando conta de que eu me divorciei de minha quarta mulher, me casei com a quinta para legitimar nossa filha, me divorciei dela e me casei com a sexta, Norris Church, que me deu um filho.
Em Londres, onde passei algum tempo trabalhando como ator profissional no cinema, fiz o papel do famoso arquiteto Stanford White em "Na Época do Ragtime" (1981). Escrevo há quase 60 anos e o resultado disso, ao que parece, foi que me tornei um competente ator canastrão.
Quanto a "Of Women and Their Elegance", os críticos não o receberam bem. Alguns dão a entender que eu só o escrevi pelo dinheiro. Bem, sempre escrevo um livro por precisar do dinheiro. Isso vem acontecendo há pelo menos 30 anos. Eu sempre escrevo um livro também pelo que espero ser uma razão mais elevada.
Tenho sido acusado de ser obcecado por Marilyn Monroe, mas, quando John Updike escreve duas vezes sobre alguma coisa, dizem que ele tem um tema. Se eu escrevo duas vezes sobre alguma coisa, é uma obsessão. Digamos que Marilyn é um dos meus temas.
Fui chamado de "enfant terrible" do mundo literário e me perguntaram se criei esse perfil de propósito. A verdade é que provavelmente colaborei com ele de vez em quando, mas hoje já não o faço de propósito.
Eu até gostaria de ser levado a sério de vez em quando. Você sabe, já sou um cidadão de terceira idade, e quando você vem escrevendo há quase 60 anos e já escreveu por volta de 30 livros, mais ou menos, você até gostaria que alguém se sentasse para escrever uma resenha e dissesse que o novo livro de Mailer é bom, ou é mau, mas pelas seguintes razões.
Mas eu sempre leio o mesmo primeiro parágrafo -Norman Mailer, ex-candidato a prefeito de Nova York, homem que trai as esposas, pau-para-toda-obra amador, bom-moço judeu do Brooklyn. Tudo isso está sempre presente, e eu me canso disso. É quase como se eu fosse entregue como uma caixa de espaguete Rinzoni, com rótulo em cima.
Quase 40 anos atrás eu disse que, para sobreviver, talvez fosse preciso tornar-se tão visível ao público que você não poderia ser ignorado. Era essa minha preocupação na época, que eles simplesmente passassem a meu lado sem me ver. Talvez você ache graça hoje, mas os anos 50 e 60 haviam sido décadas muito monótonas, e muitos de nós sentíamos que havia uma espécie de disposição em abafar a literatura.
Hoje, penso que o problema não é ser ignorado. Acho que o problema é fazer meu trabalho da maneira mais séria possível, mas convivo há tanto tempo com essa idéia pública dupla que as pessoas fazem de mim -uma de "oh, ele é uma pessoa incrível, fantástica, ligeiramente amoral", e a outra de "oh, ele é um dos nossos melhores escritores"-, que eu já estava começando a ter prazer nela.
Quando eu estava trabalhando num romance situado no Egito na 20ª dinastia, o reino de Ramsés 9º, em 30 a.C., passei nove anos escrevendo o livro de maneira intermitente. É história? Não, porque esse período é virtualmente desconhecido. O Egito viveu uma fase de decadência nessa época, e sabe-se muito pouco sobre ela.
Comecei a escrever esse manuscrito por acaso, tanto em relação à época quanto ao lugar. Eu pretendia escrever um capítulo sobre o Egito, comecei a pesquisar, e o capítulo virou dois capítulos. Antes que eu me desse conta, já tinha virado um romance sobre o Egito.
Não passei muito tempo no Egito. Fui para lá, e o Egito se pôs no meu caminho. Hoje o Cairo é uma cidade de muitos milhões de pessoas, e não se pode dirigir um carro sem morrer de medo de que se vai atropelar 30 pessoas. Quando estive lá, logo após a Guerra dos Seis Dias, era um lugar totalmente desagradável.
Percebo que fazer críticas a mim já virou quase uma moda. Me divirto quando as críticas são bem feitas e eu posso aprender alguma coisa com elas. Me irrito quando são golpes baixos, e me irrito especialmente quando são jovens destrutivos, rapazes ou garotas, tentando fazer nome, partindo para um ataque frontal, e não o fazendo bem. Se o fazem bem, posso ler e dizer: "Esse aí tem futuro, porque escreve bem".
Acho fraudulento o chamado "novo moralismo". Eu me considero um conservador de esquerda. Acho que é tudo um enorme embuste, um embuste tremendo.
Eles querem aumentar nossos estoques de armamentos, o.k, é uma conquista imensa para o capitalismo empresarial, lucros enormes, e também cuidam dos problemas na economia que precisam ser resolvidos de maneiras mais fundamentais.
Então vamos voltar até os anos 30, quando Roosevelt saiu de uma Depressão, começando a construir nosso estoque de armamentos e a economia de guerra dos anos 40.
Educação? Eu não sofri nenhum ferimento em Harvard. O que sofri foi uma confusão profunda, porque eu pensava que o mundo fosse um tipo de lugar, e não entendia esse novo mundo de jeito nenhum. Passei uma vida toda tentando entender esse mundo, o mundo do establishment, que é um mundo fascinante, longe de ser mau. Talvez o establishment venha a ser a única coisa capaz de nos salvar do capitalismo empresarial americano, que detesta o establishment e todos os chamados liberais da Costa Leste do país.
Eu me lembro de como este país era belo, e cobri-lo de prédios de apartamentos, aquele lixo todo do sul do país, o plástico todo, obrigar as crianças a crescerem num ambiente plástico, em que seus dedos jamais tocam nada de bom, assistindo aquela TV idiota, o videota do miasma, como diz Jerzy Kosinski -é monstruoso.
Mas voltemos aos meus escritos. Certa vez eu disse que iria bater a bola mais longa de todos os tempos nas letras americanas. Eu disse isso há muito, muito tempo. Mas, é claro, eu também disse que seria prefeito de Nova York. Concorri ao cargo e fui derrotado. Mas ainda vou tentar escrever aquele livro importante.
Quero manter segredo sobre o tema, porque o problema de um protagonista é quase insuperável. Se você consegue encontrar um protagonista, tem a chance de escrever um livro assim. Já tenho uma ou duas idéias. Realmente não quero divulgá-las.
Quando escrevi "Os Nus e os Mortos" eu estava querendo dizer alguma coisa, mas não estava dizendo que "guerra é inferno". Acho que eu estava dizendo: "Isto lhes dará alguma idéia de como era a guerra e de como somos nós, enquanto americanos".
Quando escrevi "O Canto do Carrasco", eu ainda estava tentando dizer a mesma coisa: "Olhe para nós. Somos um povo muito incomum, melhor do que pensamos, sob alguns aspectos, e pior, em outros".
Uma vez eu senti e disse que a Guerra do Vietnã era a única cura temporária possível para o que, na época, chamei de nossa "esquizofrenia nacional".
O que me preocupa é a possibilidade de que, no sentido mais amplo, este país não realize seu grande potencial de líder espiritual do restante do mundo, que terminemos como todos os outros impérios, lembrados na história como opressores.
Antigamente, achávamos os filmes B terríveis, mas compare os filmes B às minisséries -os filmes B parecem bons. O medíocre ficou pior, e isso é bem assustador. Se o entretenimento popular melhorasse...
Eu não me comparo a Hemingway ou Faulkner; eu diria que eles são do primeiríssimo time. Não vejo nenhum de meus contemporâneos como sendo mais elevados do que eu. Por outro lado, tampouco me vejo numa posição superior a eles.
Eu poderia citar 20 autores pelos quais sinto respeito. Não admiro nenhum de nós. Não acho que nenhum de nós seja suficientemente bom. Saul Bellow é um escritor maravilhoso, mas poderia ser bem melhor. Norman Mailer é um escritor maravilhoso; poderia ser muito melhor. A mesma coisa se aplica a Updike.
Não sei se a língua inglesa está sendo poluída irrecuperavelmente ou se os escritores de hoje e aqueles ainda por vir irão nos salvar. Ela está terrivelmente poluída, mas a poluição é onipresente.
As rodovias expressas poluem, os carros poluem, o plástico polui, a língua polui. Não sei o que vamos fazer em relação à língua. Há duas tendências na existência moderna -as coisas melhorarem e as coisas piorarem.
Existe uma linguagem plástica. Ela consiste em "ya know", "like", "I mean", "man", "well, you see", "well, like kind of". Todas essas frases são plásticas. Elas podem ser intercambiadas. Acho que a língua não vai voltar a si a não ser que nós, enquanto nação, nos submetamos a algum tipo de rito de passagem. Uma crise profunda talvez seja o ato de purificação de que precisamos.
Quando eu me avalio, acho que nestes anos todos joguei joguinhos demais e acho que simplesmente não me dediquei o suficiente, não fui suficientemente disciplinado e joguei fora muita coisa.
Há uma ansiedade terrível em fazer o melhor possível.
Um de meus amigos era Gus D'Amato, empresário de Floyd Patterson. Ele me disse certa vez: "Norman, quantas pessoas você acha que entram no ringue em condições 100% perfeitas?". Eu disse que talvez um terço ou um quarto das pessoas. E ele falou: "Ninguém jamais entra no ringue em condições 100% perfeitas. Sabe por quê? Porque então não teria desculpa para perder".

Editado por June Finletter. Copyright da International Press Syndicate.

Tradução de Clara Allain.

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