São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Os personagens de Schwarz

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Este livro do crítico literário Roberto Schwarz foi capa do suplemento Mais! há poucas semanas. Parece exagero fazer uma resenha logo em seguida, porque afinal o livro é pequeno, compõe-se de dois ensaios apenas: um sobre "A Poesia Envenenada de 'Dom Casmurro'±", e outro sobre "Minha Vida de Menina", de Helena Morley.
Ouvi algumas reações antipáticas a todo esse destaque dado pelo Mais!. Depois de "Ao Vencedor, as Batatas", de 1977, e de "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", de 1990, Roberto Schwarz já teria, de um lado, dito tudo o que precisava dizer sobre a obra de Machado de Assis. O ensaio sobre "Dom Casmurro", centrado na personagem de Capitu, não traria mais novidades. De outro lado, como é que um crítico sério resolve tratar de Helena Morley?
Helena Morley! Quem é Helena Morley? É uma menina que, por volta de 1890, em Diamantina, escreveu um diário muito simpático, publicado em 1942. Conta os fatos mais corriqueiros do cotidiano. A visita de uma prima carola, a gravidez imaginária de uma tia, uma excursão para pegar passarinho, a chatice de um mingau de fubá.
Roberto Schwarz analisa esse diário, e fala de Capitu. O próprio título do livro é despretensioso, simples, como que jogado na frente da página: "Duas Meninas". Poderia ser o nome de um quadro de Guignard. Tem algo da modéstia sibilina, do sorriso encabulado do autor, tal como o vemos na foto da contracapa.
Modéstia à parte, "Duas Meninas" é um livro assombroso, até para quem sempre se assombrou com a inteligência do autor. É ler e ficar de queixo caído. Posição incômoda, da qual me corrijo então: o único defeito de Roberto Schwarz, quando demonstra a genialidade de Machado de Assis ou essa outra genialidade (sem dúvida involuntária), a de Helena Morley, é que nos faz pensar se o gênio, na verdade, não é ele mesmo, e não os autores de que trata. A modéstia dele então se explica como tática de persuasão.
Não sei se Roberto Schwarz revelou o que Machado de Assis realmente queria dizer, ou se criou um Machado de Assis leitor de Marx, de Caio Prado Jr., de Fernando Novaes, de Lukács e Luiz Felipe de Alencastro. Machado de Assis talvez seja atualmente um personagem de Roberto Schwarz, assim como Helena Morley, que acaba de ser criada pelo crítico. "Duas Meninas" é um título que tem algo de ficcional também.
Não importa; ou melhor, está errado o que eu disse acima, pois o que este livro faz é provar, de modo incontestável, que a menina Helena Morley, com seu diariozinho em Diamantina, dava um quinau literário nos grandes vultos de nossas letras, Euclides da Cunha por exemplo. E que Machado de Assis, mais uma vez, merece o nome de bruxo, ao registrar, na narração capciosa de Bentinho, a audácia iluminista da moça Capitu -cuja derrota, por adultério imaginado, sela o destino do romance, marca o delírio do narrador e esclarece a violência de nossa formação social.
Mas isto é apenas uma parte do livro de Schwarz. Sua defesa de Helena Morley tem implicações teóricas. Como é que um diário sem pretensões literárias pode produzir um efeito estético muito superior a toda a verborragia "literária" dos "grandes" escritores brasileiros? Onde está a literatura?
Onde ela não existe, talvez. Onde a realidade toma a palavra. Onde o saber concreto, factual -pescar num rio, duvidar das superstições mineiras, conhecer o valor do dinheiro, desprezar os puxa-sacos, os José Dias e a corte dos dependentes em "Dom Casmurro"-, predomina sobre a aparência, o estilo ataviado, a falsidade da aparência "estética".
Roberto Schwarz diz que é assim. Pode-se ver beleza literária numa frase qualquer dita pelo cobrador de ônibus. Desde que seja uma compressão, uma síntese poética da realidade -a qual, evidentemente, o crítico saberá deslindar. O diabo é que esse crítico adverso aos prestígios da aparência estética terminará produzindo, a meu ver pelo menos, um outro, um novo fato estético, talvez superior às proezas que identificou.
Meu entusiasmo se torna então suspeito. Elogiando Schwarz, transformando-o em artista, nego suas esperanças de que o real organizado seja idêntico à beleza. Não quero fazer isto, mesmo porque concordo com a esperança acima. Mas toda organização do real, à medida que não se cumpre na prática, é ato de ficção, por mais realista ou antiliterária que seja essa ficção.
Caberia então ver, no livro de Schwarz, o que há de literário no realismo sociológico que orienta sua escrita.
Ressalto o estilo. Nada pior que dizer isto a Roberto Schwarz, para quem as classes cultas brasileiras se perdem no ornamental, que é aqui um álibi de classe, um disfarce pseudomoderno para a mesma opressão secular.
Mas o estilo chama a atenção. Em Roberto Schwarz podemos encontrar a terceira geração da prosa modernista. A primeira, de Mário de Andrade, encontrava e valorizava, com certo espalhafato, o erro gramatical. A segunda geração foi a da revista "Clima": Antonio Candido, Paulo Emílio, Décio de Almeida Prado puseram em dicção quatrocentona seu radicalismo crítico. A terminologia popular se tornava caseira, decorosa, brasileira, mas com certo comedimento culto.
José Paulo Pasta Jr., num debate transcrito na revista "Estudos do Cebrap", notou quantas palavras, na prosa de Schwarz, têm "o pé na cozinha". Termos como "danado", "trocadilho infame", "metido", por exemplo, são de uma coloquialidade preciosa.
Em "Duas Meninas", Schwarz gosta de substituir a palavra "moderno" por "adiantado", ou "avançado". Na escolha vocabular, há ao mesmo tempo a reverência à geração de "Clima", o sotaque provinciano-superior do quatrocentão, como o toque caipira de quem sabe que ser moderno não é tudo.
Toda hora vemos uma palavrinha destas sobressair no texto. Não é o menor prazer na leitura. De "desbloqueio" a "zunzum", vemos como Roberto engasta, no raciocínio bem parafusado (êpa), o potencial errático, espontâneo, concreto, da língua.
O vocabulário, ao mesmo tempo esquisito e brasileiro, dá conta de muitas coisas. Não só de um "pé-no-chão" literário, mas também de uma superação da naturalidade classuda de "Clima" e da balbúrdia didática de Mário de Andrade. Mais ainda. Esses toques de estilo são uma defesa do pré-capitalismo diante das ameaças da modernidade.
O livro todo parece advertir contra a ideologia da modernização. Chega a buscar o que pode ser salvo na experiência histórica do Brasil colonial. Nas entrelinhas, ressoa uma pergunta machadiana. Assim como Bentinho indagava se a Capitu traidora estava contida na Capitu inocente da adolescência em Matacavalos, estamos perguntando se o Fernando Henrique de Brasília era o mesmo que conhecíamos dos seminários do "Capital".
Resistência teimosa, portanto, num livro em que a inteligência se mostra a cada página, onde o jorro do argumento tropeça de propósito nos caroços da linguagem, e onde cada caroço constrói um edifício imaginário, que é ao mesmo tempo imagem viva do real. Roberto Schwarz é um artista muito sutil, planejado e implicante. Detive-me na análise do estilo, porque tenho um fraco pelo ornamental que ele detesta; mas não acho estar errado neste ponto.

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