São Paulo, sábado, 28 de junho de 1997
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As lições da conta 88888

SÉRGIO LÍRIO
DA REPORTAGEM LOCAL

Mais de 200 anos de existência e a responsabilidade de cuidar do dinheiro de figuras ilustres do Reino Unido, entre elas a rainha Elizabeth 2ª, não foram suficientes para que o banco Barings aprendesse duas lições (pelo menos antes que fosse tarde demais).
A primeira é que nunca se deve deixar, em qualquer jogo, que um único jogador participe das partidas e controle a mesa.
A segunda é que, ao contrário do que pensavam os diretores do banco, ganhar dinheiro não é tão fácil, fora as exceções de praxe.
Quando Nick Leeson, aos 25 anos, foi transferido para Cingapura, o Barings não só deixou que ocupasse uma dupla função como, nos primeiros resultados de seu trabalho, passou a acreditar que ganhar dinheiro era fácil demais.
Repare na frase de Peter Baring, presidente do conselho de administração, dita em 93: "A recuperação da lucratividade tem sido espantosa...levando o Barings a concluir que não é tão difícil assim ganhar dinheiro no negócio de títulos mobiliários".
Gerente geral de futuros do Barings em Cingapura, Leeson era, ao mesmo tempo, chefe do pregão (quer dizer, comandava as transações do banco na Simex, a Bolsa de Valores) e do "back office" (setor que liquidava as operações efetuadas pelo banco no dia).
A posição privilegiada lhe garantia o poder de manipular informações enviadas a Londres. Irresponsável, inexperiente para o cargo que ocupava, ele não hesitou em reverter a jogada a seu favor na primeira vez em que algo deu errado.
O "jeitinho" de Leeson se chamava 88888, uma conta inativa na qual lançava perdas acumuladas. Como a conta não aparecia nos registros enviados a Londres, era possível alterar os saldos no final do mês e transformar, num passe de mágica, prejuízos em lucros.
Manipulando constantemente os dados, Leeson conseguiu, durante três anos, convencer a matriz em Londres a enviar cada vez mais dinheiro para cobrir suas operações em Cingapura. Quanto mais ele falseava as informações, mais libras o Barings enviava para a construção de seu próprio túmulo.
A brincadeira começou com US$ 250 mil e acabou em um prejuízo de cerca de US$ 1 bilhão, na falência do Barings, em 95, e na condenação de Leeson a seis anos e meio de prisão em Cingapura.
A pergunta de todo o episódio é como Leeson conseguiu enganar por tanto tempo todos os executivos do Barings e o grupo externo de auditores que inspecionava suas operações.
É bom lembrar que aqui não se fala em fraude no futebol brasileiro, mas em uma das mais tradicionais instituições financeiras do Reino Unido, que se orgulhava de ter financiado reis em todo o mundo e cujos diretores encarnavam a imagem de geniais e espertos.
Essa perplexidade é expressada melhor no relatório da Bolsa de Cingapura sobre o caso.
"A explicação... (de) que a administração superior do grupo Barings acreditava que as operações do sr. Leeson representavam pouco (ou nenhum) risco, mas proporcionavam um excelente retorno, é implausível e em nossa opinião demonstra um grau de ignorância da realidade do mercado que carece por completo de credibilidade", dizia o relatório.
Na autobiografia "A história do homem que levou o Barings à falência", Nick Leeson procura provar justamente que a opinião da direção do Barings era plausível e refletia um grau de ignorância quase inacreditável.
Além de desancar o Barings, a história de Leeson mostra que o "mercado" não é formado só pelos melhores. Incompetentes, irresponsáveis e trapalhões também sobrevivem nele -e até por muito tempo. Leeson durou três anos, mas o Barings levou 233 para desmoronar.

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