São Paulo, sábado, 28 de junho de 1997
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'O Beijo' transforma incesto em best seller americano

MARCELO REZENDE
EM PARIS

Reunido em Paris, um grupo de curiosos se prepara para ouvir a americana Kathryn Harrison: "Escrevi isso para ser um ajuste de contas com meu passado". Assim ela inicia a leitura de "The Kiss", o livro em que mostra como, aos 20 anos, se apaixonou perdidamente por seu próprio pai.
Um preparativo para a edição francesa de suas memórias trabalhadas em romance, Harrison explica na pequena livraria Village Voice, na margem esquerda do Sena, o que fez de seu livro um escândalo e um best seller.
"The Kiss" ("O Beijo") chegou ao mercado norte-americano em fevereiro (o livro será editado no Brasil em agosto, pela editora Objetiva). E fez de Harrison -uma romancista que nunca havia recebido muita atenção da crítica ou público- um acontecimento.
Em 207 paginas, Harrison narra de que maneira sua mãe fica grávida aos 17 anos de um jovem de futuro incerto. Ela, nascida em uma rica comunidade. Ele, inseguro e com uma forte religiosidade.
"Meu livro nasceu de uma necessidade. Minha mãe já havia morrido e eu preparava outro trabalho de ficção", disse Harrison à Folha.
"Depois de ler meus originais, meu editor disse que havia algo de errado com o romance. Ele me aconselhou a reescrever, resolver um problema. Meu problema era minha própria história, a história que já havia contado para mim milhares de vezes."
Depois de seu nascimento, Harrison foi entregue aos seus avós, sofrendo a recusa de sua mãe. Com os anos, essa negativa se transforma em confronto. Ela e a mulher que a gerou estabelecem uma competição explícita. Tentam descobrir quem era a mais interessante, mais bela ou mais forte. De seu pai, não recebia notícias.
"Em 'The Kiss' meu pai é o personagem, mas minha mãe é a grande razão de tudo."
Ele retorna quando começa sua vida adulta. Casado e com filhos, é o pastor de uma pequena cidade. Harrison procura fugir do terrorismo emocional de sua mãe nos abraços de seu pai.
O primeiro ato do incesto acontece em uma despedida, quando ele se prepara para entrar em um avião e partir. Harrison aproxima os lábios do rosto de seu pai e ele, inesperadamente, como ela escreve em seu livro, coloca a língua em sua boca. O beijo.
Foram quase cinco anos de encontros furtivos em vários cantos da América. Procuram lugares onde não pudessem ser reconhecidos, de hotéis ordinários aos mais conhecidos pontos turísticos da nação.
Depois que tudo acaba, ela decide escrever romances. Em cada um deles disfarça a si mesma criando personagens que são variações de sua própria vida. Sua mãe um dia descobre. Harrison finalmente -ainda que admita o alto custo de seus atos- a derrota.
Depois da decidir escrever "The Kiss", inicia uma segunda batalha: "A reação na América foi algo que beirava a censura. Eu esperava ser criticada, mas o que ocorria nas resenhas era uma condenação. Todos me condenavam porque eu resolvi escrever uma história que parecia ofender as pessoas", Harrison conta.
"Na verdade me condenavam porque em meu livro não há culpa, não há arrependimento. Era como se todos dissessem: 'Você poderia manter isso em silêncio, não?"'
Sobre as reações em sua família, fala da compreensão de seu marido e do silêncio de seu pai: "Não sei ao certo como ele reagiu. Nós não nos falamos há nove anos".
Kathryn Harrison termina a entrevista e se dirige às pessoas que a aguardam. Depois de apresentada por seu editor na França, pega sua obra e lê passagens sobre o dia em que descobriu o sexo e a virilidade em seu pai.
Sua audiência de 25 pessoas não esconde o nervosismo com a situação. As mãos que seguram o livro tremem. Kathryn Harrison começa a chorar.

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